28 January 2007

NADA EM LUGAR NENHUM


"Foi um acontecimento. Definiu aquele Verão, mas, como as revoltas [dos guetos negros] de Watts, também o interrompeu — do mesmo modo que, daí em diante, essa canção interromperia tudo aquilo que pudesse estar a acontecer no instante em que começasse a ser tocada. Foi um incidente que teve lugar num estúdio de gravação e foi lançado para o mundo com a intenção de não deixar o mundo exactamente igual. Isto não é o mesmo que mudar o mundo, o que implica um modo pelo qual se desejaria que o mundo mudasse. É mais como traçar uma linha para ver o que poderá acontecer: ver quem a canção revelaria de um ou do outro lado da linha e quem a poderia pisar. Dessa forma, a canção enquanto acontecimento transformou os seus ouvintes em testemunhas. Aos ouvintes-enquanto-testemunhas caberia fazer sentido do que viam e escutavam na canção (...); transportar o acontecimento com eles ou tentar deixá-lo para trás, como desejassem ou como pudessem, porque a reacção a um acontecimento não é algo que se seja inteiramente livre de escolher".

É Greil Marcus quem escreve e refere-se àquele momento ocorrido há quarenta anos, entre 15 e 16 de Junho de 1965, no estúdio A da Columbia Records, em Nova Iorque, quando, acompanhado por Mike Bloomfield (guitarra), Bobby Gregg (bateria), Paul Griffin (piano), Al Kooper (orgão), Bruce Langhorne (pandeireta) e Joe Macho Jr (baixo), Bob Dylan gravou os seis minutos e seis segundos de "Like A Rolling Stone" e, ao fazê-lo, inventou o rock'n'roll moderno tal como o conhecemos. Só a 20 de Julho desse ano — data em que o single foi editado, com a canção esquartejada em duas, nos lados A e B — o mundo se daria conta do abanão que acabara de sofrer e, cinco dias depois, no Newport Folk Festival, acompanhado pela Paul Butterfield Blues Band, Dylan consumaria o gesto: as águas ficariam definitivamente divididas entre a velha guarda folk "esquerdista" que nunca realmente entendera o significado de "The Times They Are A Changing" (e que o vaiou em fúria) e todos aqueles que se aperceberam de como, dali em diante, a cultura popular norte-americana (isto é, mundial) abrira irreversivelmente um novo ciclo.

 

Já antes, em Invisible Republic (1997), Greil Marcus caracterizara a ebulição criativa de Dylan que daria origem às Basement Tapes gravadas com a Band como "uma das mais intensas irupções do modernismo no século XX", associando-o a Joyce, Eliot ou Yeats. Agora, nas quase trezentas páginas do recém publicado Like A Rolling Stone - Bob Dylan At The Crossroads (ed. PublicAffairs), não hesita em colocar no mesmo plano os dezasseis minutos de "Highlands" (do álbum Time Out Of Mind, 1997) e a trilogia de Philip Roth, Pastoral Americana, Casei Com Um Comunista e A Mancha Humana. Sim, porque Marcus — um dos muito raros "scholars" da cultura pop que não se circunscreve ao "biografismo" mas toma cada assunto como mero pretexto para a mais larga e fascinada especulação — escreve como Altman ou Paul Thomas Anderson filmam: se, em Mystery Train (1975), onde pintava um imenso painel da América a partir das músicas de Presley, Robert Johnson, Randy Newman, The Band e Sly Stone, confessava que "já não era capaz de ruminar sobre Elvis sem pensar em Herman Melville" e, em Lipstick Traces (1989), traçava a genealogia do punk recorrendo aos surrealistas, dadaístas, situacionistas e aos heréticos medievais da Irmandade do Livre Espírito, também, desta vez, o instante fundador de "Like A Rolling Stone" é apenas uma via de acesso, por exemplo, ao Highway 61 — Highway 61 Revisited, o álbum onde "Like A Rolling Stone" figuraria, seria editado pouco depois, a 30 de Agosto de 65 — que percorre os EUA, do Golfo do México à fronteira canadiana, atravessando o delta do Mississipi, local "sagrado" de passagem, vida ou morte de Bessie Smith, Muddy Waters, Charley Patton, Son House, Elvis ou Martin Luther King: "O Highway 61 corporiza uma América tão mítica e real como aquela América construída em Paris a partir de velhos discos de blues e jazz pelos expatriados sul-americanos do romance de Julio Cortazar de 1963, Rayuela —, um romance no qual, como numa autoestrada, podemos entrar onde queremos".

Porta aberta também para a bizarra história de Mrs. Sarah L. Winchester, viúva do inventor da espingarda Winchester que, muito naturalmente, desaguará numa sessão do concurso televisivo "American Idol" onde um patético desfile de imitadores reproduz os estereótipos "dylanianos" tal como a grosseira percepção do "público" os reteve. Ou ainda para a versão de "Go West", dos Village People, pelos Pet Shop Boys (sim, sim, e faz todo o sentido). Todas, afinal, em "Like A Rolling Stone", desencadeadas por aquele coice inicial da bateria de Bobby Gregg ("um disparo que não acontece no terceiro acto mas mal o pano sobe"), pela irada descarga de vómito verbal ("há bombas a rebentar por todo o lado e cada bomba é uma palavra: 'DIDN'T', 'STEAL', 'USED', 'INVISIBLE', fazem parte da história mas, pela forma como são cantadas — declamadas, marteladas, atiradas do cimo da montanha para rebentarem aos pés da multidão —, cada palavra é também a própria história"), pela assombrada atmosfera sonora ("Enquanto som, a canção é uma caverna. Entramos às escuras; a pouca luz que existe desenha sombras incertas nas paredes que, à medida que as observamos, parecem mover-se ritmadamente. Começa a parecer-nos que podemos adivinhar que flash se seguirá ao anterior. Mas, quanto mais olhamos, mais vemos e menos fixo tudo nos parece"). Um ano depois, em conversa com o crítico de jazz, Nat Hentoff, Bob Dylan diria: "As minhas canções antigas, para dizer o mínimo, eram acerca de coisa nenhuma. As novas são sobre o mesmo — apenas observadas no interior de algo maior, chamado, talvez, lugar nenhum". (2005)

2 comments:

Anonymous said...

Greil Marcus sobre Lester Bangs e sobre si próprio: "What this book demands from a reader is a willingness to accept that the best writer in America could write almost nothing but record reviews" na contracapa do Mainlines, Blood Feasts and Bad Taste.

Eu às tantas deixo de ouvir o Bob Dylan a cantar o Maggie's Farm. É quase só a guitarra de Mike Bloomfield.

Anonymous said...

[p]Ugg boots consider [url=http://www.2013sportsshoes.com]air jordan retro for sale[/url] unisex boots made of sheepskin Nov 13, 2010 If you pick Australia Uggs, Y . Whatever do know for sure is hundreds, probably many people will not be able to purchase this shoe . Their design style is enhanced from the use of a variety of [url=http://www.2013sportsshoes.com]air jordan on sale[/url] colors . Prior to a use of trapeze signs, Nike air jordans 1 and Jordans 2 were utilized denoting [url=http://www.airjrodan2013.com/air-jordan-5-retro.html]Jordan 5 Retro[/url] winged basketball . The recommended ceremony is to walk [url=http://www.airjrodan2013.com]air jordan retro 4[/url] around it triple making a wish . Jordan had also been [url=http://www.airjrodan2013.com]air jordan release dates 2013[/url] unsuccessful in a single case to get familiar with the basketball team of his university when he was at the tenth class because was found under height to become listed on the team . [url=http://www.2013sportsshoes.com]jordan shoes for sale
[/url] 5 . Upon his [url=http://www.2013sportsshoes.com]air jordan release dates[/url] return in 2010 Tiger has switched to Nike's new SQ . The middle sole of your shoe is [url=http://www.2013sportsshoes.com/air-jordan-13-retro.html]Air Jordan 2012[/url] vibrant along with the outermost sole is red colored.[/p]