12 February 2007

OS SENTIMENTOS SÃO UM LUXO DOS RICOS


Desde que se casou com Susie Bick — que, alegadamente, conheceu debaixo da cauda do Braquiosauro no Museu de História Natural de Londres —, Nick Cave é um homem mudado. Com um horário de trabalho rigoroso (ele insiste que o que o ocupa é o trabalho, puro "craft") e uma aparência perigosamente saudável, o espírito parece ter-se também modificado num sentido positivo. Pelo menos, é a sensação com que se fica depois de nos receber numa suite de um hotel londrino com decoração de "fake library" para conversar acerca do novo álbum, Nocturama. São apenas dez horas da manhã mas ele sorri facilmente, dialoga cordialmente sem maus humores e parecem restar poucos vestígos do antigo "crooner from Hell". Embora, confesse, continue a ignorar o que é a felicidade.

Segundo sei, este álbum foi gravado muito rapidamente, numa semana, embora tenha continuado a seguir o procedimento iniciado em The Boatman's Call — pegar ao trabalho às nove da manhã e largar às seis — para o momento da escrita das canções...
Agora, por acaso, até pego antes das nove... (risos) De facto, foi escrito muito depressa, com muito poucos arranjos pré-definidos. Tinha os textos, algumas ideias de sequências de acordes, peguei nelas e, no estúdio, apresentei-as à banda que teve um papel criativo muito mais importante do que era habitual.

Esse processo de auto-disciplina da escrita continua, portanto, a ser necessário?
É crucial. Absolutamente. Não foi apenas uma experiência que me tivesse apetecido realizar. É aquilo que eu, a esse respeito, pretendo continuar a fazer até morrer. Porque sei que, se não o fizer todos os dias, o mundo lá fora, para mim, torna-se intolerável. É tanto uma estratégia de sobrevivência como a tomada de consciência de que a inspiração só chega se nos tivermos preparado para a acolher. Por isso, vou para o escritório, tenho a minha ferramenta preparada, tenho o piano e fico ali, à espera.


Tem, então, de certo modo, de se forçar a escrever?
Sim, mas apenas no sentido em que podemos dizer que nos "forçamos" a lavar os dentes.

Mas, às vezes, temos de nos forçar a fazer a barba...
(risos) É isso, é mais como fazer a barba. Mas fazêmo-lo e pronto. Eu faço a barba todos os dias. Para outras pessoas, poderá ser um esforço maior. O que eu quero dizer é que não acordo de manhã e penso "será que me apetece hoje fazer a barba?", "estarei deprimido demais para me barbear?" Barbeio-me e ponto final.



Porquê chamar a este álbum Nocturama quando esse bem poderia ser o título das obras completas de Nick Cave?
Talvez... Nocturama é o nome de uma das canções que levei para estúdio e que, infelizmente, acabou por não ser incluida no disco. Era uma bela canção mas existem algumas canções minhas que, se não forem interpretadas no registo certo, resvalam para o lado errado do sentimentalismo. Por outro lado, "nocturama" é o nome que se dá aquela zona dos zoos onde se guardam os animais nocturnos. Mas eu gostava desse título. A editora, entretanto, detestou-o! Disseram-me: "passámos nós os últimos dez anos a tentar afastar de si essa imagem tenebrosa e agora vai dar ao álbum o nome do sítio onde se acoitam os morcegos!" Daí que tenham tentado suavizar a coisa pelo lado do "lettering" e tenham usado um castanho-"teddy bear"...

Contudo, ainda que possa não ter sido consciente, parece haver aqui a procura de um ponto de equilíbrio entre o registo das baladas que ultimamente tem favorecido e o das canções mais ritmicamente rasgadas, por exemplo, de Murder Ballads...
Não foi, de facto, consciente. Como lhe disse, compus ao piano e não tinha uma ideia muito clara de como iriam resultar. De certo modo, penso que realizei aquilo que desejava em termos de baladas nos últimos dois ou três discos e que era escrever grandes canções de amor melancólicas e tristes de recorte clássico. Comecei, então, a ficar um bocado impaciente e a desejar algo mais intenso. Suspeito que o próximo álbum ainda irá explorar mais essa direcção porque cheguei a um ponto em que me interrogo se cada disco constitui ou não, de algum modo, um salto em frente. Estou-lhe a dizer isto mas quem sabe se, quando voltar para o escritório, não volto a sair de lá com mais quinze baladas nos braços... (risos)



O processo de criação é algo de independente da sua vontade?
É e não é. Inicialmente, tropeço num título, ocorrem-me ideias ou escrevo algumas linhas que não compreendo muito bem nem sei de onde vêm mas que me sugerem qualquer coisa. A seguir a isso, é trabalho artesanal, é cálculo matemático.

Um dos seus discos que mais gosto é The Secret Life Of The Love Song onde registou a conferência que realizou para um conjunto de aspirantes a "songwriters" na Poetry Academy de Viena antes de um "workshop" de uma semana. Sentiu que era possível a transmissão de um método de escrita?
Convidaram-me para escrever um ensaio, ensinar e depois actuar com os alunos no final do processo. Tinha estado em digressão e saí dela directamente para lá. Não tinha a menor ideia do que iria fazer acerca de ensinar algo que não pode ser ensinado, tinha apenas escrito o ensaio. Mas, desde o primeiro dia, houve uma ou duas coisas que ficaram logo claras: havia naquele curso pelo menos uma ou duas pessoas que eram muito melhores do que eu! Por acaso, havia sete rapazes e sete raparigas. Sentei-os aos pares, frente a frente, e pedi-lhes que, em vinte minutos, escrevessem uma canção de amor acerca da pessoa que tinham diante de si e que não conheciam de lado nenhum. No fim desse tempo, um deles levanta-se e deixa-me de boca aberta com o que tinha acabado de escrever: era inacreditavelmente óptimo! Na verdade, não sei se lhes cheguei a ensinar alguma coisa excepto o facto de a situação os poder ter inspirado e encorajado.

A certa altura, dizia: "aqui estou eu, aos 43 anos, cada vez mais parecido com o meu pai: dando aulas"...
É verdade. O meu pai era um professor extraordinário. Sempre que regresso à Austrália, encontro ex-alunos dele que se recordam das suas aulas de Literatura Inglesa. E, em casa, não deixava de ser professor. Era, se calhar, melhor professor do que pai o que muitas vezes acontece. Aprendi tudo com ele acerca do amor pela forma como as palavras soam. Lia-me textos e explicava-me todos os pormenores acerca das aliterações, do movimento coordenado das palavras... Adorava a literatura violenta, os russos, o Titus Andronicus de Shakespeare, por exemplo, por conter tanta morte e violência.




O que conhece realmente acerca do conceito de "saudade" no fado português e do "duende" do flamenco que também refere nessa conferência?
O que sei, aprendi-o no Brasil. Ensinaram-me essa palavra porque as pessoas estavam sempre a usá-la a propósito daquilo que eu estava a escrever para The Good Son. Pareceu-me que não existia um equivalente na língua inglesa e que se referia a um inexplicável anseio ["longing, yearning", em inglês], mas algo mais misterioso do que isso. Um anseio por algo que não se consegue nomear nem sabemos se alguma vez existiu. Foi essa a minha interpretação desse sentimento que eu próprio desejava explorar. Neste álbum, há uma canção, "There Is A Town" que ainda se baseia nessa ideia.


Foi precisamente em The Good Son que a sua escrita começou a mudar, das canções arrebatadas e violentas com um espírito muito Antigo Testamento para o que quase se poderia chamar uma visão mais serena do cristianismo tendo até chegado a escrever o prefácio para uma edição do Evangelho segundo Marcos. Está de acordo?
Não penso que o Novo Testamento seja sereno. Não será tão violento como o Antigo mas é uma narrativa agonizante obcecada com a morte de Cristo. Pareceu-me uma coisa muito inspiradora e humana, não era uma concepção oriental de fuga ao sofrimento mas de o abraçar. Não me parece que se possa dizer que o meu trabalho depois de The Good Son seja sereno, acho-o muito perturbante. Digamos talvez que já não chafurdo tento no sofrimento e na abominação mas que procuro sair disso através de alguma forma de redenção. É um pouco aquela ideia de Oscar Wilde de estarmos com os pés na sarjeta mas com os olhos nas estrelas. Nas primeiras canções, eu estava com os pés na sarjeta e a olhar para a sarjeta.


Será possível dizer-se, então, que hoje é mais feliz?
Não sei o que é a felicidade. A felicidade é um sentimento e, para mim, tentar compreender o que é a felicidade é como procurar apanhar um rato morto numa cave. Parece-me que os sentimentos estão muito sobrevalorizados e preocupamo-nos demais com a forma como nos sentimos. O que eu faço é trabalhar. Levanto-me de manhã e não examino os meus sentimentos. Sento-me ao piano e escrevo. É como a tal ideia de fazer a barba. Os sentimentos são um conceito do final do século XX. E suspeito que, à medida que o século XXI for avançando, os sentimentos irão ter muito pouco a ver com tudo. Os sentimentos são um luxo dos ociosos. Eu trabalho.

Os sentimentos são um conceito burguês?
É isso mesmo! Os sentimentos são um luxo dos ricos. (2003)

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