13 May 2007

O TERCEIRO HOMEM

(real. Carol Reed, 1949, a partir do romance homónimo de Graham Greene; música de Anton Karas
)



(pistas de decifração liberalmente sampladas de La Musique Au Cinéma, de Michel Chion)

* A cítara de Anton Karas, única fonte musical do filme, executa diversos temas em andamentos diferentes, tendo Karas sido descoberto no local de rodagem, em Viena, conduzindo o realizador a repensar completamente a sua concepção.



* Desde o início, o tema principal "de Harry Lime" ressoa sobre o que é um dos mais estranhos genéricos da história do cinema: o instrumento é filmado em grande plano de forma que, ao mesmo tempo que se escuta o tema, se vêm as cordas vibrar sem se observar os dedos que as tocam. Os ataques dos sons são subtilmente desfasados em relação aos movimentos que se vêm, segundo uma coreografia de quase sincronismo. Poder-se-à dizer que este desfasamento — associado ao caracter anódino e absurdamente feliz do ritmo — anuncia o ponto de vista do que se lhe segue: tratar o tema distanciadamente?

* O filme contrapõe um expressionismo visual ostensivo à frieza estudada da montagem e do jogo de representação dos actores.

* Existirá uma relação entre o ponto anterior e a personagem Holly Martins/Joseph Cotten, um romancista sarcástico e frio, paradoxalmente alcoólico e cerebral, em busca de um tema de inspiração?

* Notar a forma pouco "empática" de encadear os temas musicais, como se as músicas se sucedessem segundo os estados de alma de um DJ algo indiferente.

* A "voz off" que inicia o filme ensaia um registo de falso documentário distanciado a propósito da partilha de Viena pelos Aliados. E essa voz, a do romancista Holly Martins, começa por falar de música: "Não conheci a Viena de antes da Guerra, a de Strauss". A "grande música antiga" considera-se perdida, só resta a sua caricatura.



* Na cena onde Martins chega a Viena, essa música, inexplicavelmente feliz, só se interrompe no cimo das escadas da gare, apenas como se tivesse chegado ao termo do seu próprio movimento natural, sem qualquer outro motivo para que isso acontecesse.

* Essa música é ouvida, igual, mais à frente, quando Martins/Cotten deambula por um cemitério à procura de um informador. O som da cerimónia do funeral articula-se com o início da música de Anton Karas.

* A confrontação entre Martins e Lime, na Grande Roda do Prater, onde os seres humanos, lá em baixo, são observados como insectos desprezíveis (dando azo à célebre tirada de Lime acerca do contraste entre os horrores do papado e dos Borgias e a pacífica democracia suiça e o que isso implicou quanto á cultura mundial e... ao relógio de cuco), é sublinhada pela intervenção irónica da cítara.

* Será que essa cena materializa visualmente o ponto de vista da própria música? Um movimento circular, cinicamente indiferente — a Grande Roda do Prater —, enquanto se comete um crime e o horror alastra?



* E o Harry Lime frio e altivo, sem "falhas" nem ansiedade, "é" aquela música e ela é uma espécie de seu alter-ego? Existe realmente entre ambos uma relação assim tão directa? Não será antes uma caricatura musical, um sublinhado monótono pela própria música, na sua irremediável circularidade, da Viena — metáfora da Europa dividida do pós-guerra — sem norte, esvaziada de horizontes ? A sofisticada e cosmopolita "Viena das valsas" em compasso ternário, simbolizada por uma música de vago recorte "étnico"?

* Notar ainda, em matéria do som que atravessa todo o filme, a forma como a narrativa é imediatamente situado sob o ponto de vista do ocupante: quase continuamente, o espectador não-germanófono, encontra-se mergulhado — e sem a mínima possibilidade de o compreender a não ser através de episódicas e fragmentárias traduções — no discurso em alemão dos vienenses, dessa forma se reconhecendo imediatamente em "terrritório estrangeiro". (2002)

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