05 May 2007

UM CRESCENDO MAIS INTENSO


Elvis Costello é um santo. É oficial. A colaboração com Burt Bacharach poderá, eventualmente, ter favorecido o processo de canonização mas não é todos os dias que, depois de uma conferência de imprensa seguida de quarenta minutos de espera enervante para dizer meia dúzia de palavras de circunstância para uma estação de televisão que tardava em estabelecer o contacto, alguém ainda se dispõe a dar uma entrevista individual. Ele, ao contrário da reputação que o precede, concordou em fazê-lo. De muito bom grado, com excelente disposição, pronto a falar sobre tudo. Será que o contacto íntimo com o "easy listening" é o caminho mais curto para o "easy talking"?

No processo de colaboração entre si e Burt Bacharach que deu origem a Painted From Memory, pode dizer-se que, da sua parte, isso constituiu também uma aprendizagem?
Em qualquer colaboração, temos de nos adaptar ao ponto de vista do outro e não nos agarrarmos apenas ao nosso. Com o Burt, aprendi a ter confiança em ser capaz de deixar subentendido o sentido de uma canção nas entrelinhas e a não ter a obsessão de dizer logo tudo nos primeiros oito compassos. Quando trabalhamos com uma banda de rock ruidosa e agressiva, temos uma certa tendência para a competição. Nestas canções, com as orquestrações que o Burt escreveu, não foi necessário competir de uma forma tão viva. Tive a oportunidade de deixar os argumentos das canções desenvolverem-se gradualmente dando origem a um crescendo muito mais intenso do que aquilo que alguma vez consegui com uma banda, deixando que os elementos expressivos se fossem revelando a pouco e pouco. Ele contou-me que, uma vez, a Marlene Dietrich lhe disse "Não ofereças o teu sorriso de mão beijada". Era uma forma de lhe dizer que não é bom revelar todos os segredos de uma canção de uma só vez. E quem melhor do que ela para compreender o dramatismo de uma canção? Por outro lado, apercebi-me também como uma decisão musical, aparentemente apenas de ordem técnica, pode afectar decisamente a expressão emocional de um texto.


Neste disco, pode-se dizer que há canções 100% Bacharach com pequenas contribuições suas (além dos textos) e também o inverso ou tratou-se de um processo de colaboração total entre os dois?
Por causa das nossas trajectórias anteriores, haverá uma tendência para se considerar que todas as melodias são do Burt e todos os textos meus. É verdade que os textos são meus mas, na minha opinião, neste disco, eles são menos importantes do que a música. Estão lá para transmitir a emoção exacta que surge a partir da música. Há duas canções — "This House Is Empty Now" e "The Long Division" — em que, para ser honesto, tenho de dizer que não tive qualquer participação na música. Fiz uma ou duas sugestões mas, nessas duas canções, não escrevi uma nota. Noutras, posso ter aberto o caminho com as ideias iniciais mas trabalhámos juntos em verdadeira colaboração. Em "I Still Have That Other Girl", por exemplo, uma frase musical é minha, outra do Burt, estabeleceu-se entre nós um autêntico diálogo em que não combinámos nenhuma fórmula onde cada um tivesse de escrever um determinado número de compassos.



Todas as canções que escreveram foram incluidas no álbum ou houve algumas que tivessem ficado de fora?
Creio que houve apenas uma canção que começámos a escrever e com a qual não ficámos muito satisfeitos. Pusemo-la de lado e não lhe voltámos a pegar. Para duas outras, eu tinha também uns esboços iniciais mas, a certa altura, reparámos que o tempo nos começava a faltar. O Burt foi de opinião que não valia a pena escrever 36 para, no final, escolher 12. Era melhor concentrarmo-nos apenas nessas 12, trabalhá-las muito bem e gravá-las. Por isso, só completámos e gravámos as canções em que tínhamos realmente confiança. O que é uma atitude francamente melhor do que escrever uma grande quantidade de música mediana para depois escolher a menos medíocre que é o que se passa com muitos discos.

Um dos seus últimos álbuns chamava-se Brutal Youth. A este, gravado com Burt Bacharach, poder-se-ia chamar Brutal Ageing?
Não, não (risos). Todas as canções são acerca da perda do amor e o título, Painted From Memory, significa que são evocações do passado, memórias que, por vezes, desejamos apagar ou "pintar" por cima de modo a podermos lidar melhor com elas. Mas é, evidentemente, um trabalho de ficção, não me passaria pela cabeça dizer que estes textos foram inspirados por episódios da minha vida embora possam ter sido enformados por acontecimentos que testemunhei ou vivi.

A sua veneração pelas canções de Bacharach já é antiga, não é?
É verdade. Com os Attractions, fazíamos uma versão de "I Just Don't Know What To Do With Myself" e, mais tarde, gravei outras de "Baby It's You" e "Please Stay". Sempre gostei de algumas das canções mais ligeiras dele como "What's New Pussycat?" ou "Raindrops Keep Falling On My Head" mas as que realmente me tocavam eram outras como "Anyone Who Had A Heart" que tinham uma atmosfera romanticamente mais tensa.


(c/ Brodsky String Quartet)

De qualquer modo, quando no início da sua carreira o obrigaram a incluir um arranjo para cordas no single de "Alison", o "angry young" Elvis da altura não achou muita graça a isso...Quer dizer que mudou de opinião?
Nessa altura, procurávamos realmente encontrar um ponto de equilíbrio entre o que considerávamos ser o som autêntico do grupo e a possibilidade de atingir um público mais alargado. A editora americana suplicou-nos praticamente de joelhos que colocássemos cordas no disco. Então, nós dissemos-lhes: "OK, vamos a isso, dêem-nos o dinheiro!". E comprámos o sintetizador de cordas mais barato que havia no mercado com um timbre que parecia um gato a ser estrangulado. Entregámos-lhes a gravação e dissemos "Aí está o vosso arranjo de cordas". Editaram-no e, naturalmente, o single foi um rotundo fracasso o que nos proporcionou o grande prazer de lhes poder dizer "Bem vos avisámos que, com cordas, não iria funcionar...". Há uma enorme diferença entre isso e trabalhar com o Burt ou com o Brodsky String Quartet que são pessoas realmente capazes de compôr e de executar extraordinariamente bem. Sempre apreciei esse tipo de sonoridades mas, até há pouco tempo, não tinha verdadeiramente lugar para elas na minha música.


(c/ Chet Baker)

Nestes últimos anos tem colaborado com imensos músicos diferentes do que este álbum é apenas um último capítulo. A seguir a este projecto, já tem planos para trabalhar com outros músicos?
Pode dar a impressão que eu planeio tudo isso mas a verdade é que a maioria deles foram convites que me dirigiram. Se a iniciativa tivesse de partir de mim, provavelmente nunca teria existido nenhum. Acontece que ou travo amizade com alguém ou, por acaso, encontro com quem escrever canções em conjunto... Colaborei por acaso com Paul McCartney, escrevi para a Aimee Mann, trabalhei com os Jazz Passengers com o Bill Frisell e o John Harle mas, de momento, não tenho nada combinado para trabalhar com qualquer outra pessoa. A única coisa melhor do que ter colaborado com o Burt Bacharach seria poder prolongar esta parceria noutros concertos e, se possível, escrevermos mais algumas canções.

Isso significa, então, que a sua carreira a solo fica, por agora, entre parêntesis?
Mas esta é a minha carreira a solo! Actualmente não trabalho com uma banda. Por isso, o que faço é escrever canções e, ocasionalmente, colaborar com outros músicos. Quando trabalhava com uma banda, no fundo, também se tratava de uma colaboração com outros três músicos que apenas não escreviam as canções. Os Attractions eram uma banda maravilhosa, na minha opinião, foram mesmo a melhor banda que emergiu do final dos anos 70. Serviram extraordinariamente bem as minhas canções durante alguns anos e, mais recentemente, voltámos a ter os nossos bons momentos. Mas, a partir de certo momento, as relações pessoais não eram as melhores e isso acabou por prejudicar a música.



Não está, portanto, a pensar em voltar a trabalhar regularmente com uma banda?
Não me parece. Há sonoridades tão diferentes com que me apetece trabalhar que não vejo bem qual seria a vantagem disso. Entusiasma-me muito mais trabalhar com tantos músicos excelentes que há por aí, mesmo sabendo que cada um tem também os seus projectos pessoais. Fazer parte de uma banda é algo que acontece durante os primeiros anos de uma carreira e em que o grupo, de certo modo, funciona como um gang. E eu fui sempre o chefe do gang o que, talvez, tenha sido uma das razões para os problemas que surgiram!...(risos)

Agora que já não sente sobre si a pressão de ter "hits" nas tabelas de vendas, sente-se mais livre?
É claro que sempre gostei que o maior número possível de pessoas apreciasse as minhas canções. Mas, mesmo no princípio, quando aparecíamos no "Top Of The Pops" praticamente todas as semanas, por vezes, nos concertos, fazíamos versões assombrosamente más dos nossos êxitos da altura porque sentíamos um certo ressentimento em relação a esse sucesso. Éramos jovens e arrogantes e achávamos que todas as outras canções eram melhores do que as que o público preferia. Conheço músicos jovens que, hoje, lidam muito melhor com isso do que nós fazíamos. De qualquer modo, este é o momento mais feliz da minha vida, estou muito satisfeito com o que estou a fazer, colaborar com o Burt foi a realização de um velho sonho que, além do mais, abre novas perspectivas interessantes. Embora este álbum não contenha o género de canções que irão ser muito passadas na rádio — é preciso perder tempo a escutá-las e aprender a apreciá-las —, por outro lado, tem a possibilidade de ser abordado em jornais tão diferentes como o "New Musical Express" ou o "New Yorker".


(c/ Fiona Apple)

Há muitos músicos jovens que o procuram?
Não, não acontece tanto como isso. Talvez isso se venha a passar quando for mais velho. Neste momento, estou naquela fase da vida em que já não sou jovem mas também ainda não sou velho. Sei que há muitos músicos mais novos que gostam do que eu faço (li numa entrevista que os Beastie Boys são meus fãs — só dos primeiros discos, parece que detestam os últimos!) mas tudo depende da forma como, em determinado período da vida, se encara a música.

Feitas todas as contas, será que ainda vai acabar como o seu pai, a cantar com uma "big band"?
(risos) A banda de Joe Loss com que ele cantava tinha, principalmente, sopros...Por agora, esta é, essencialmente, de cordas. Mas, de facto, já cantei com grupos de country, jazz e rock'n'roll, orquestras sinfónicas, quartetos de gospel e de cordas. O essencial é ser capaz de manter o espírito aberto e retirar prazer de tudo isso. (1998)

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