28 August 2007

CANÇÕES DE AMOR E ÓDIO



Richard Thompson - RT: The Life And Music Of Richard Thompson

Ambrose Bierce bem se poderá ter divertido a amarrotar o ego de muito e bom músico (no Dicionário do Diabo, entre vários outros amáveis exemplos, definia "acordeão" como "instrumento que está em harmonia com os sentimentos de um assassino" e explicava que "piano" era um "utensílio de salão que serve para subjugar o visitante impenitente; para o pôr a funcionar, primem-se as teclas e deprimem-se os ouvintes") que não foi isso que impediu Richard Thompson de, na contracapa do seu primeiro álbum a solo (Henry The Human Fly, de 1972), citar a sua definição de "mosca": "um monstro do ar que presta obediência a Belzebu. (...) Ela é o Rei, o Chefe, o Patrão! Saúdo-a". Nada de surpreendente em Thompson.



Quando o interrogaram acerca do significado do título de Mirror Blue (1994), referiu o poema de Tennyson, "The Lady Of Shalott" ("And sometimes thro' the mirror blue, the knights come riding two and two, she had no loyal knight and true, The Lady Of Shalott") e esclareceu que "a Senhora é uma figura amaldiçoada, apenas vê a realidade como um reflexo. Se olhar directamente para o mundo, morre. O mesmo se poderia dizer da música. Não que, por causa dela, possamos morrer, mas porque se trata apenas um reflexo da realidade".



Richard Thompson, nada de confusões, é o exacto contrário do "name dropper". Mas, a um dos seus biógrafos, Patrick Humphries (Richard Thompson: Strange Affair, The Biography), chegou a confessar que não seria uma ideia completamente idiota incluir uma bibliografia nas capas dos seus discos. Dave Smith (em The Great Valerio - A Study Of The Songs Of Richard Thompson), por outro lado, raia o absurdo na tentativa de demonstrar como praticamente tudo o que ele compôs se inscreve na directíssima descendência de T.S. Eliot, Yeats, Blake, Shakespeare, Robert Graves, a Bíblia e o Corão (para ficarmos por uma síntese moderada).



Ainda que, de caminho, se tenha dado ao trabalho de — nas trezentas e tal páginas da exegese — demonstrar como, nas canções de Thompson (ou como ele postula: "numa típica canção de Richard Thompson"), estão invariavelmente presentes, pelo menos, oito "clusters" temáticos, de que os mais frequentes são "violência/armas/sangue/guerra/tortura" (64%), "amor/ódio/coração" (56%), "riqueza/pobreza/roubo" (50%), "morte/sepultura/fantasmas" (40%) e "luz/trevas/dia/noite/sol/lua" (36%). Adicione-se a isto a afirmação de Greil Marcus que garante que "muitas vezes, Richard Thompson parece cantar os anos da peste, caminhando atrás de uma carroça cheia de cadáveres", recupere-se o que Thackeray dizia do mesmo Tennyson mencionado umas boas linhas atrás ("ele lê todo o tipo de coisas, engole-as e digere-as como uma gigantesca boa-constrictor poética") e teremos o retrato acabado de Richard Thompson "songwriter" erudito, gótico e infernal, profeta de todas as abominações e apocalipses.



É uma boa parte da verdade mas está bastante longe de ser a verdade toda. Porque esse é precisamente o mesmo Richard Thompson que, em 1000 Years Of Popular Music (2003), acha perfeitamente razoável incluir nos "all time classics" do milénio, "Oops! I Did It Again", de Britney Spears (é verdade, ele até tem um bem avinagrado sentido de humor). E que, a Paul Zollo (Songwriters On Songwriting), indica como modelos Buddy Holly, The Shadows, Scotty Moore, Les Paul, Django Reinhardt e, sobre todos, Bob Dylan. E Phil Ochs. Do qual, fez questão de actualizar, em contexto pós-Iraque, o militante "I Ain't Marching Anymore". Mas também aquele outro que, por ocasião do nascimento da filha, Muna, escreveu a "lullabye" — "The End Of The Rainbow" — definitivamente suicidária ("I feel for you, you little horror, safe at your mother's breast, no lucky break for you around the corner, 'cos your father is a bully and he thinks that you're a pest, and your sister, she's no better than a whore"), o mesmo que suplicou que, no dia em que alinhasse na peganhenta tradição confessionalista dos "singer-songwriters", lhe dessem um tiro na testa, e o que (mas, façam um esforço, compreendam a crucial diferença) desde há mais de trinta anos, aderiu ao sufismo islâmico.



São todos estes Richard Thompsons que se podem encontrar nesta sua "arca da vida" tematicamente organizada. Nem uma só gravação foi antes publicada. Ninguém também sonhe — entre incontáveis "bootlegs", inúmeras colaborações, obscuridades avulsas, versões alternativas, reeencontros, bandas paralelas, amabilidades várias e gravações oficiais — possuir-lhe, alguma vez, a interminável discografia exaustiva. Mesmo no que respeita a clássicos miseravelmente ignorados como os magníficos Industry (1997) ou o renascentista, escatológica e exuberantemente radical, The Bones of All Men (1998). Mas, desta vez (na compilação, até aqui, indiscutível, do que nunca antes ouvimos), há cinco CD — as marcas urbanas de Londres, as escolhas dos fâs, a guitarra além-estrelas, as versões e os inéditos absolutos —, onde, dos Fairport Convention ao estado de graça com Linda Thompson e a tudo o que veio a seguir, se pode ganhar infinitamente mais do que muitas vidas a abocanhar sofregamente música e palavras. (2006)

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