20 September 2007

TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (XIV)



"Na minha famíla, nunca houve realmente ninguém que trabalhasse no show business mas existiram duas pessoas que, ainda muito jovem, me afectaram bastante, o tio Vernon e o tio Robert. Quando era miúdo, detestava o som da minha voz. O que eu queria era que ela fosse como a do tio Vernon, rouca e agreste. Tudo o que ele dizia parecia ser importante e percebíamos as coisas sempre à primeira porque ninguém se atrevia a pedir-lhe para repetir. Um dia, acabei por saber que o tio Vernon, em criança, tinha feito uma operação à garganta e que os médicos, quando o coseram, se tinham esquecido de uma compressa e da tesoura lá dentro. Anos mais tarde, num jantar de Natal, o tio Vernon ia morrendo engasgado com um feijão que engoliu e, durante um enorme ataque de tosse, deitou cá para fora a tesoura e a compressa. Foi assim que ele ficou com aquela voz e foi também assim que a minha deu nisto — a tentar imitá-lo. Ao domingo, íamos sempre visitar o tio Robert que era organista numa igreja metodista em La Verne, na Califórnia. Tinha um orgão de tubos dentro de casa que chegava até ao telhado. Quando tocava, esborrachava as notas como lápis de cor derretidos e a casa tremia toda. A casa, aliás, era uma perfeita confusão: havia roupas por todo o lado e a cama estava sempre por fazer. Pensei comigo mesmo 'Isto é que é o show business!'. Perguntei à minha mãe porque é que o meu quarto não podia ser igual ao do tio Robert e ela respondeu-me 'Tom, o teu tio Robert é cego'.

(...)

"Aprendi muito acerca de música com outros músicos e escutando o mundo à minha volta. Mas, quando era miúdo e vivia em Whittier, havia um puto ruivo chamado Billy Swed que vivia com a mãe numa caravana, junto à linha do caminho de ferro. Foi ele que me ensinou a tocar em tons menores. O Billy não ia à escola. Com doze anos, já fumava e bebia e vivia com a mãe ao pé de um acampamento de vagabundos, à beira de um lago lamacento onde havia pneus a boiar, fumo por todo o lado, carpas mortas e abóboras do tamanho de candeeiros. Podíamo-nos perder à procura do sítio onde eles viviam, no meio da floresta, através de um rego, debaixo do viaduto, no caminho de um vale cheio de colchões e latas de tinta vazias. Enquanto o Billy me ensinava a tocar, reparei que ele gostava de desenhar nos jeans com uma caneta. Estavam cobertos com estranhas tatuagens de hieróglifos ocultos que eu tentava constantemente decifrar. Tinha a certeza que era a notação musical dele e que tinha centenas de canções escritas nas calças. A mãe do Billy era enorme. Olhava para ela, para a porta da caravana e, a seguir, outra vez para ela e enfrentava o meu primeiro problema de matemática a sério: como é que a Mrs. Swed conseguia passar naquela porta? Aos oito anos, lembro-me de pensar que ela era como um barco dentro de uma garrafa e que nunca seria capaz de sair cá para fora. Fosse como fosse, a caravana, o pântano e a Mrs.Swed saíam todos da guitarra do Billy em tom menor. Foi num dia de Ano Novo, depois de uma semana de chuva ininterrupta, que fui até ao sítio deles para os voltar a ver mas o Billy e a mãe tinham desaparecido. O conhecimento secreto dos acordes que ele me ensinou, porém, ultrapassaria tudo o que aprendi na escola e proporcionar-me-ia uma base para toda a minha música.

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"Sempre adorei canções de aventura, 'murder ballads', canções sobre naufrágios e actos terríveis de depravação e heroísmo. Histórias eróticas de sedução, canções de romance, coragem desabrida e mistério. Uma vez por outra, toda a gente já desejou viver no interior de uma canção. Canções onde as pessoas morrem de amor. Canções de gente em fuga. Canções de navios-fantasmas e assaltos a bancos. Sempre quis viver no interior de canções e nunca mais voltar. Canções que são receitas para superstições e desaparecimentos inexplicáveis. 'They Call The Wind Mariah', 'Teen Angel', 'Bonnie Bonnie Bedlam', 'Pretty Boy Floyd', 'Springhill Mining Disaster', 'Lonesome Death Of Hattie Carol', 'Winken, Blinken And Nod', 'The Sinking Of The Titanic', 'Three Ravens', 'Zaz Turned Blue' 'Pretty Polly', 'Streets Of Laredo', 'Raglan Road', 'John Henry', 'Stagger Lee', 'Ode To Billy Joe', 'Frankie And Johnny', 'Brother Can You Spare A Dime?', 'Volga Boatmen', 'In The Hall Of The Mountain King', 'Goodnight Loving Trail', 'Strange Fruit', 'Jacob's Ladder', 'Spanish Is The Loving Tongue', 'Lost In The Stars', 'Sympathy For The Devil', 'Auld Lang Syne' e 'Jesus Blood Never Failed Me Yet'. Estas são algumas das minhas preferidas.

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"Na zona sul de Chicago, no Checkerboard Lounge, Hound Dog Taylor, o último grande bluesman, estava a actuar perante um público ruidoso e a ser interrompido por um bêbedo sentado na primeira fila. O Hound Dog sacou de um revólver de calibre 38, deu um tiro no pé do bêbedo, voltou a meter o revólver nas calças e acabou a canção. Apeteceu-me muitas vezes fazer o mesmo mas nunca tive coragem.

(...)

(1993)

2007

1 comment:

Anonymous said...

Será que dá viver em canções?
Eu quero a receita.