08 October 2007

DE OUTRO MUNDO



PJ Harvey - White Chalk




Jesca Hoop - Kismet




Rachel Unthank & The Winterset - The Bairns

Vamos precisar de cartógrafos. Gente capaz de pisar um território pela primeira vez e, ao mesmo tempo, ir-lhe desenhando o mapa detalhado que sirva para nele não nos perdermos irremediavelmente. Porque, se nestes três discos, aqui e ali, ainda existem marcas e marcos reconhecíveis – é território árido mas definitivamente habitado, embora com um povoamento escasso e imensamente disperso –, eles desorientam-nos mais do que nos decifram um percurso sem demasiados acidentes. Não conhecemos estes mundos e, quando neles entramos, devemos avançar com precaução. White Chalk, de PJ Harvey, por exemplo. Recordam-se de “Sheela-Na-Gig”, aquela declaração de guerra (“Look at these my child-bearing hips, look at these my ruby red, ruby lips, look at these my work strong arms”) que evocava as homónimas esculturas pagãs (em inúmeras igrejas britânicas) de figuras femininas exibindo uma vulva devoradoramente aberta?


Quinze anos depois, aparentemente, foi Polly Jean quem acabou por ser devorada pela sua própria invocação, renascendo como personagem de um romantismo lívido que implora ao demónio por salvação (“Come! Come! Come here at once! Come on a night with no moon”), suplica perdões (“Please don’t reproach me for how empty my life has become”), aspira ao mergulho nas trevas (“Dear darkness, won’t you cover me again?”) e à passagem para outro mundo (“Something’s inside me unborn and unblessed, disappears in the ether, this world to the next”) e deixa uma nota final de despedida: “Farewell my friends, farewell my dear ones, if I was rude, forgive my weakness”. Serão, como ela afirma, fragmentos de um filme interior, mas não é fácil acreditar que se trate apenas de pura ficção, de cenários de um Thomas Hardy deslocado no tempo, emoldurados pelo dedilhar infantil de um piano, a narrativa de uma voz sem corpo, melodias ternamente mórbidas, cítaras, harpas e as colinas brancas de cal de Dorset.

O conceito de Kismet (em árabe e turco, “fado”, “destino”) poderia ajudar um pouco a entender a biografia de Jesca Hoop: nascida na opressão teológica de uma família Mormon de quinta geração, só algo como a “predestinação” a poderia ter conduzido daí a uma existência “on the road”, mil empregos de ocasião – ela enumera-os: trabalhadora rural e na construção civil, guarda florestal, vigilante, terapeuta de autistas – e o último e decisivo: “nanny” dos três filhos de Tom Waits e Kathleen Brennan, durante cinco anos. Dificilmente, na história do mundo e das gentes, percurso idêntico se repetirá, tal como não existe muita música que seja equiparável aquela que Jesca cria. O santo padroeiro-Waits (que lhe deu a benção e lhe ofereceu os códigos de acesso à indústria discográfica) definiu-a como “Uma moeda de quatro faces, uma alma antiga, uma pérola negra, uma bruxa boa ou uma lua vermelha. A sua música é como nadar, à noite, num lago” e, ao fazê-lo (coisa habitual, aliás…), tirou o pão da boca a quem, daí em diante, devesse falar sobre o álbum de estreia de Jesca Hoop.


Mas, para a identificação desta singularidade musical, poderá contribuir um pouco saber-se que a peculiar arquitectura destas canções (não por acaso, em diversos momentos, assaz waitsianas) se alimentou de gospel, música de câmara, velhíssimos blues, folk, jazz, country, “murder ballads”, vaudeville e cabaret que Hoop submeteu ao princípio estético “gosto de maximizar as minhas idiossincrasias”. E desenvolve: ”Quando escrevo, as canções surgem-me em formas abstractas e bizarras mas suponho que ainda consigo manter alguma relação com aquilo a que podemos chamar ‘a norma’. Quando reduzimos tudo aos elementos essenciais, torna-se possível engendrar um ponto de vista original". Ouvido Kismet, não há como não lhe dar razão e, acima de tudo, invejar a sorte dos três rebentos Waits a quem já não bastava o privilégio da ascendência…

The Bairns, finalmente, é pura paisagem lunar encenada na Northumbria britânica. A matéria-prima é simultaneamente rica e frugal – canções tradicionais de abuso e inocência perdida , lullabyes funerárias e cantilenas fantasmáticas, mas também temas originais, “Sea Song”, de Robert Wyatt, e “A Minor Place”, de Bonnie Prince Billy – e os recursos deliberadamente limitados: duas vozes (Rachel e Becky Unthank), piano (Belinda O’Hooley) e violino (Niopha Keegan).


Mas, ainda que a linhagem publicamente reivindicada seja notória e ilustre (uma genealogia que une The Watersons, Joni Mitchell, June Tabor, Sufjan Stevens, Regina Spektor, Nick Drake, Billie Holiday e os Led Zeppelin) e o manifesto estético tomado de empréstimo a Louis Armstrong (“all music is folk music, I ain’t never heard a horse sing a song!”), o que Rachel Unthank & The Winterset pintam (e este é um caso em que se deve obrigatoriamente declarar que a música aspira à condição de pintura) não se assemelha a nada que, até hoje, a música popular anglo-americana tenha produzido: da mesma dimensão fundadora de Liege & Leaf, dos Fairport Convention, de uma mão-cheia de gravações de June Tabor ou do período de ouro de Richard & Linda Thompson, The Bairns – nas vozes literalmente avassaladoras de Rachel e Becky e no milagre de invenção instrumental exclusivamente ancorado no piano e violino(s) – é o exacto tipo de álbum que, instantaneamente, cria o seu próprio território, ocupa todos os espaços vazios à volta e reformula os parâmetros segundo os quais, a partir de agora, se avaliará toda a música futura que, explícita ou implicitamente, alegue parentesco com o vocabulário tradicional. (2007)

4 comments:

saturnine said...

parte de mim (uma GRANDE parte de mim) não consegue entender a Polly Jean. já não sei que lhe faça. separo-a do Nick Cave e não resta nada que me faça ficar. eu sei que tenho as épocas todas trocadas (por dentro). será que não estou no caminho certo para ver a luz?

João Lisboa said...

Não sei o que possa fazer por ti, peqenuo_pnoto_ptero. Olha, experimenta a Jesca Hoop ou as manas Unthank.

saturnine said...

isto não tem nada a ver, mas hoje vi o Planet Terror e algures nas legendas aparecia um "isntante" em vez de "instante". adoro estas homenagens subtis. :')

(entretanto, anotarei as dicas. quanto à Polly Jean, é esperar que me chegue a idade ou a paciência, ou ambas, como em tudo.)

menina alice said...

As manas Unthank devem ter-me escapado aqui derivado da PJ e da Jesca. Agora googlava a propósito e vim cá ter na mesma. ;)

Quem precisa da memória quando existe a internet?