28 November 2007

NAVEGAR É PRECISO



Cristina Branco - Ulisses

Suponho que, neste momento, não deverá ser tremendamente arriscado afirmar que o futuro do fado (venha ele a ser qual for) passará inevitavelmente por um percurso definido por duas atitudes só aparentemente opostas: a puríssima autenticidade, quase austeridade — mas, atenção, nunca sinónimo de ortodoxia — de Camané e a liberdade de movimentos de Cristina Branco. Lateralmente, poderão considerar-se também contributos como os de Mafalda Arnauth/Amélia Muge em Esta Voz Que Me Atravessa, de António Chainho com A Guitarra E Outras Mulheres ou até experiências importantes (embora falhadas) como Canto, de Mísia, sobre a música de Carlos Paredes. E, uma vez que é do novo álbum de Cristina Branco que agora se trata, há-de vir a propósito recordar como, por altura da edição de O Descobridor - Cristina Branco canta Slauerhoff, ela própria se definia: "Não me considero fadista. Ponto. Canto fado. Canto o meu fado. Aquela ideia do xaile, aquele dramatismo não tem nada a ver comigo. Canto a vida, a minha vida".



É certamente uma atmosfera bastante mais saudável de se respirar do que aquela que ainda teima em se colar aos velhos estereótipos ou, para efeitos de exportação, os espectacularizar e quase caricaturizar. Ulisses só pontualmente é fado — em rigor, apenas na "Gaivota" de Amália/O'Neill/Oulman — mas, na voz de Cristina e na guitarra de Custódio Castelo, quer o idioma seja o português de Portugal ou do Brasil, o castelhano, o inglês ou o francês, é impossível não sentir que o "blueprint" do que é (foi, será?) o fado, explícita ou implicitamente, se encontra presente. Nem que seja somente perceptível à transparência. Podemos, então, reparar como, sem o saber, Joni Mitchell andou pelas margens do fado quando escreveu "A Case Of You", como, obliquamente, Vitorino ou Fausto se cruzaram também com ele ou apercebermo-nos de que nas palavras de Paul Éluard ("Liberté"), na música tradicional portuguesa ou na discreta aproximação a alguns padrões rítmicos brasileiros, há, de certeza, matéria mais do que suficiente para enriquecer e ampliar o código genético daquilo que, um dia, se chamou fado. Cristina Branco canta como (quase) ninguém, Custódio Castelo (e Ricardo Dias) aplicam-se na arte da joalharia e, daí, resulta naturalmente o que será, sem dúvida, um dos grandes discos de música portuguesa de 2005. E do futuro. (2005)

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