18 November 2007

OS IDIOTAS



Last Days - realização de Gus Van Sant

Kurt Cobain poderia não ser um génio mas idiota também não era. Tinha uma noção clara da (ir)relevância artística do que fazia ("O ponto-limite da experimentação foi atingido há mais de uma década e o futuro do rock não poderá oferecer senão infinitas repetições de coisas já feitas. (...) O rock'n'roll não tem futuro e, já hoje, os putos se estão nas tintas para ele: na melhor das hipóteses, consideram-no uma boa banda sonora para as suas vidas social e sexual"), do seu lugar enquanto "peça da máquina" ("A indústria do espectáculo é uma máquina tremenda, pronta a espremer dinheiro de qualquer fenómeno artístico e logo apressada a desembaraçar-se dele depois de lhe ter extraído tudo quanto era possível. Hoje, está a repetir-se aquilo que aconteceu ao punk no final dos anos 70: um movimento musical de ruptura é comprado, em bloco, pelas 'majors' que o transformam numa moda, tiram daí enormes lucros e, depois, atiram os restos para o lixo") e, para o que agora interessa, acerca da forma como ele próprio era encarado: "Parece que todo o mundo me considera meio atrasado mental mas isto não me chateia (...), pelo contrário, quando encontro alguém que me vê assim, faço tudo para lhe confirmar essa sua convicção. Estou perfeitamente consciente da minha personalidade e isso sempre evitou que fosse obrigado a alguma coisa para demonstrar ao próximo quem sou".



Aparentemente, Gus Van Sant terá sido um dos tais a quem Cobain "confirmou as convicções". Pelo menos desde Amadeus, de Milos Forman, sabemos bem que um filme "inspirado numa biografia" não tem de ser necessariamente um reflexo exacto da vida. Mas convém também que não a distorça para além de toda a possibilidade de reconhecimento. Acontece, porém, que, classificar o Blake/Cobain de Van Sant como "débil mental", seria uma amabilidade. Para ele e para toda a galeria de almas penadas que assombram o autêntico covil de zombies que é a casa (e arredores) do cenário de Last Days, espectros incapazes da linguagem articulada tal como os humanos a conhecem, absurdos tolos irredimíveis sem razão (nem sequer o alibi "junky" é explícito) ou justificação para assim serem. Blake, apatetado, deambula sem sentido — apenas o "sound-design" enigmáticamente "deslocado" indicia alguma perturbação... mas qual? —, tartamudeia fonemas incoerentes, suplicia as cordas de uma guitarra, e, num momento final de kitsch deliquescente (tão pertinente como fora, pouco antes, o "Venus In Furs", dos Velvet Underground), ascende aos céus ao som da polifonia vocal quinhentista de "La Guerre", de Clément Janequin. O Cobain real, ao menos, na nota de despedida que deixou, não escondia porque disparou a caçadeira: "Sou uma pessoa demasiado instável e de humores e, agora, não experimento nenhuma paixão. Recordem-se: é melhor arder numa só labareda do que enferrujar a pouco e pouco". (2005)

1 comment:

Ruca! said...

gosto do van sant enquanto realizador mas raramente consigo ir além disso.

acho que muitas vezes o seu excesso de técnica tira espaço e tempo à narrativa.

e esse filme suupostamente sobre cobain é o exemplo disso.

mas o teu texto tá fixe e gostei do teu blog. abraço.

ah, e será que foi ele que disparou a caçadeira?