09 January 2008

O FADISTA: A PERFEIÇÃO IDEAL DO IGNÓBIL (II)


"Maria Severa não era cigana como propalou a lenda, mas nascera na Madragoa. Sua mãe, a Barbuda, tinha uma das três tabernas que então havia naquela rua e alcunhavam-na assim porque possuía tanta barba que a obrigava a cortá-la frequentemente e a encobri-la com um lenço. (...) Era mulher de faca na liga, cabelinho na venta e língua de prata, uma fadistona que podia pedir meças às mais decididas, trigueira e mal encarada - um estafermo. As barbaças davam-lhe uns ares suspeitosos, porque lá diz o velho adágio: a pícaro descalço, o homem calado e a mulher barbada não dês pousada. Mas sua filha - e aqui temos de corrigir novamente a lenda - era um tipo agradável, insinuante, uma rariga alta, bonita, clara, graciosa, bem feita e bem posta, com olhos peninsulares que eram dois abismos negros cheios das vertigens do infinito.

(Arquivo Fotográfico Municipal de Lisboa Rua da Mouraria, 47 a 51, foto entre 1898 e 1908, fotógrafo não identificado)

Cantava e batia o fado como um fadista. Também fumava, embora, então, as mulheres da sua laia pouco fumassem em público e à porta, onde ainda não se usavam as meias portinholas da actualidade. (...) Quando se estabeleceram [na Mouraria] as visitas da polícia sanitária, a Severa tentou opôr-se à inovação, e, armando-se de uma acha de lenha, amotinou as suas companheiras e espancou os encarregados da higiénica tarefa, obrigando o médico, um marreco, a dar às de Vila Diogo". (in História do Fado, de Pinto de Carvalho/Tinop, 1903)

(2008)

3 comments:

Anonymous said...

lol! Era espancar os inspectores da ASAE como a Severa!

Anonymous said...

Olha uma cena muito boa

João Lisboa said...

"Era espancar os inspectores da ASAE como a Severa!"

E tu achas que não foi logo a primeira coisa em que pensei? Claro que a "insurreição" da Severa acabou mal e a Mouraria - aka o actual Martim Moniz... - acabou por ser arrasado e higienicamente (isto não começou agora) desputizado... isto é, varridas as putas para debaixo de outro tapete, até hoje. Mas que lhe deve ter feito muito bem ao fígado correr o marreco à paulada, lá isso deve.