20 October 2008

SENTIR UM ARREPIO



"Este mundo focado no curto prazo e numa ideia muito particular de sucesso e felicidade tem coisas perversas. A aversão pela reflexão, pela ponderação, pelo raciocínio estratégico baseado em objectivos de longo prazo tem, como não podia deixar de ser, consequências muito complicadas. As pessoas só se apercebem disso quando acontece um desastre e afinal se conclui que a auto-regulação não funciona e que é necessária uma regulação responsável (...)

Agora existe a aprendizagem do século XXI, invariavelmente reduzida a tecnologia (e portanto incapaz de se adaptar à mudança da nossa forma de viver), (com "slogan" e tudo: “21st Century Learning Matters”), que diz, sem nenhum problema, de consciência ou outro, que a aprendizagem baseada nos três R (Reading, wRiting and aRithmetic), que colocava o foco inicial no domínio dessas competências (que não são skills, segundo esses educadores do novo milénio: isso das skills é mais high-tech, mais 21st century) está ultrapassada (destinava-se a um mundo repetitivo, onde as pessoas não tinham ambições, acomodavam-se, etc., a boring world), com argumentos high-tech e cheios de palavras bonitas e imagens muito atractivas como: skills, Internet, global, community, designing, creating new products, information, data analysis, aggregation, problem solving, information synthesis, in 2007 we produced more words than in the entire human history…, tudo com muitos blip-blip, data-flows e jobs of the future that we are unable to imagine yet, bem misturado e apresentado.



Claro que depois os alunos avançam e não são capazes de uma conta simples sem o auxílio de uma máquina de calcular, pensam que tudo é possível pois não conhecem as regras básicas do cálculo e da aritmética, não sabem ler (muito menos interpretar um texto), não sabem escrever uma simples frase sem vários erros de ortografia e, mais importante do que isso, sem uma sequência lógica (é preciso ler e reler várias vezes o mesmo texto, e recorrer a muita imaginação, para perceber o que eles querem dizer). Alunos cada vez mais excluídos, sem o saberem, neste mundo global onde o foco está cada vez mais no conhecimento. (...)



Vejam, por exemplo, o que os nossos líderes, nacionais e internacionais, diziam há poucos meses do actual sistema financeiro e do mercado. Como falavam da regulação. Ouvi um deles, há uns meses numa conferência, grande "economista dos comentários online", dizer que havia um “excesso de regulação, que isso impedia o dinamismo das empresas porque tinham de explicar tudo à CMVM, mesmo a mais pequena decisão. E isso retira agilidade às empresas…”. Ouvi-o há dias de novo, sem o mínimo de vergonha mas com a mesma arrogância, a dizer exactamente o contrário, que “isto (a crise financeira) demonstrou que os mecanismos de regulação não funcionaram e eram demasiado incipientes”.



Senti um arrepio. Imaginei os nossos "líderes" a dizerem-nos, dentro de anos, que infelizmente o caminho seguido foi um erro (mais uma experiência falhada) e que afinal saber a tabuada, saber ler, gostar de ler (o que se incentiva, colocando o foco na reflexão), utilizar métodos tradicionais de aprender aritmética, aprender e experimentar conceitos elementares de ciência e tecnologia, aprender música, incentivar o gosto por várias manifestações de arte, o gosto pela pesquisa e pelo pensamento original e criativo, incentivar o empreendedorismo e o risco, etc, é fundamental para as gerações do século XXI, é fundamental para aquilo que elas vão fazer, na sua vida do dia-a-dia. No fundo é isso que temos de lhes mostrar, para que não se sintam perdidos e encarem o futuro com optimismo e confiança.(...)" (o post integral de Norberto Pires, director da revista "Robótica", no De Rerum Natura)

(2008)

4 comments:

Anonymous said...

Pois, cá está outra preocupante "mudança de paradigma"... Mas isto, como era de prever, já alastrou ao Superior, quer porque alguns dos alunos já foram "ensinados" pelos novos currículos e lá chegam perfeitamente inadaptados, quer porque se introduzem métodos de ensino ditos "centrados no aluno" (não era assim que deveria ser?) onde o aluno não é ensinado mas parte à descoberta da resolução de problemas que lhe são colocados - (entre outros métodos, o agora famoso Problem Based Learning).
Um dia, com sorte à mistura, um grupo destes alunos descobrirá a Teoria da Relatividade Restrita. Brilhante. O problema é que ela já foi descoberta há um século. Mas isso eles não sabiam. E a relatividade do espaço e do tempo transformou-se assim tão-só em tempo perdido.

João Lisboa said...

"Um dia, com sorte à mistura, um grupo destes alunos descobrirá a Teoria da Relatividade Restrita. Brilhante. O problema é que ela já foi descoberta há um século. Mas isso eles não sabiam. E a relatividade do espaço e do tempo transformou-se assim tão-só em tempo perdido."

:)

exactamente...

Anonymous said...

Alunos cada vez mais excluídos, sem o saberem, neste mundo global onde o foco está cada vez mais no conhecimento. (...)
Sempre me pergunto: Qual é o conhecimento? Conhecimento para sobreviver? Conhecimento para ganhar dinheiro?
Afinal que conhecimento, hoje, é exigido?

João Lisboa said...

Hoje? Onde?