01 November 2008

EDUQUÊS ESCONDIDO COM MINISTRA DE FORA


(recuperar, três anos depois, este texto de Guilherme Valente, não serve para lhe atribuir o estatuto de "profeta" mas apenas para sublinhar como, já nessa altura, era facilmente previsível aquilo que, hoje, é patentemente óbvio)

"O aspecto mais paradoxal de tudo isto é que a escola nova é apresentada como democrática, quando, na realidade, está destinada a perpetuar as diferenças sociais" * (Antonio Gramsci)

"Confiar ao corruptor a recuperação do corrompido: é algo idêntico aquilo que a ministra da Educação acaba de fazer atribuindo a formação contínua (recuperação) dos professores do ensino básico para o ensino da matemática às Escolas Superiores de Educação... que os 'formaram'. Será que os mesmos realizarão agora numas dezenas de horas o que não foram capazes de fazer em quatro anos? Tendo de início iludido os mais inadvertidos no que respeita à identificação com essas correntes pedagógicas irracionalistas, e tendo mesmo conquistado alguma simpatia por algumas medidas óbvias de carácter administrativo que tomou, a ministra manifesta agora, inequivocamente, a sua ligação ao grupo do eduquês dominante no sector da educação do PS - representado na própria equipa governativa pelo seu elemento mais interveniente, o secretário de Estado Walter Lemos - e à sua clientela com forte implantação nas escolas superiores de educação. Se é certo que o problema do ensino da matemática começa no básico e tem a ver com a formação dos professores, com os conhecimentos e a cultura que transportam para a escola, é então evidente ser decisivo intervir nas instituições onde esses professores são formados, criando, como solução de mudança, um sistema de exames e selecção dos candidatos à docência por elas formados.

Vou fazer uma previsão: nos próximos anos o ensino da matemática vai piorar e os resultados reflectirão, naturalmente, essa realidade. Isto, claro, se não houver supressão da avaliação ou manipulação dos resultados. As teorias pedagógicas não funcionam? Baixa-se a exigência e acaba-se com os exames. Os meninos não sabem matemática? Acaba-se com a matemática: 'um programa de combate ao insucesso em Matemática deverá [...] reduzir o papel que a Matemática tem como instrumento de selecção'** (sic). Leia-se o Programa de Formação Contínua em Matemática para Professores do 1.º Ciclo agora redigido. Obrigado a recuar pela evidência da catástrofe a que conduziu o sistema, o eduquês tem estado mais discreto, mas esse documento não engana quem lhe conhece 'os tiques, as ideias apresentadas sem estudos empíricos nem dados científicos que as sustentem, repetidas à exaustão em discursos interpretativos, numa espiral discursiva centrada em si própria'***, de que são exemplo recente as intervenções do Professor António Nóvoa, na RTP, ao lado da ministra, e, no Diário de Notícias, a afirmar ser aceitável a indisciplina nas escolas. Um documento a lembrar os inúmeros papéis produzidos no ME em todos estes anos de tragédia educativa. Quem o ler sem estar dentro do assunto pensará que se trata de ensinar a matemática mais avançada e complexa. Seria ridículo se não fosse trágico. Porque aquilo de que se trata é de fazer com que os professores do ensino básico dominem a matemática necessária para ensinarem às crianças do 1.º ciclo (a antiga escola primária, sublinhe-se) a matemática adequada, procurando transmitir-lhes o gosto pela disciplina, com a abertura de espírito suficiente para não prejudicarem o interesse e a curiosidade dos alunos que revelarem maior aptidão e interesse.


Most Wanted

Independentemente das intenções dos seus promotores, suponho, a intervenção prevista nesse documento revelará mais uma vez os efeitos das correntes pedagógicas que vêm confundindo, desmotivando e frustrando professores e alunos e, no caso deste grau de ensino, impedindo as crianças de, na altura própria, adquirirem os instrumentos indispensáveis para progredirem nos níveis de ensino seguintes. Com mais do mesmo, os pobres docentes vão passar a saber ainda menos o que devem ensinar e os alunos o que devem aprender. E a qualificação dos Portugueses não passará de um propósito sempre adiado. O défice é de conhecimentos fundamentais, de valorização do saber, de exigência e responsabilidade, devendo a pedagogia assumir a dimensão e o papel que a tornam útil. Que grau de intervenção é conferido aos bons professores de Matemática e aos representantes da boa e indispensável pedagogia que certamente haverá nas escolas superiores de educação? A pedagogia não pode substituir o estudo e o trabalho, quer dos professores, quer dos alunos. Os professores não podem só aprender a ensinar, têm de aprender pelo menos o que terão de ensinar. Tal como os alunos não podem só 'aprender a aprender' (?!), mas têm de adquirir conhecimentos, só assim aprendendo a aprender e aprendendo a ensinar.


Hino oficial do Ministério da Educação

O falhanço dramático desta versão portuguesa da pedagogia dita nova, a imposição destas teorias delirantes, obrigaram, como se sabe, à descida da exigência, à depreciação do saber que conta, ao menosprezo do mérito de professores e alunos, à imposição generalizada de uma escola de 'faz de conta'. E é aqui que os 'pedagogos', muitos deles sem compreenderem aonde podem levar as posições que sustentam, passam a servir uma ideologia anti-racionalista à qual não preocupam os resultados e o insucesso escolares. Para essa ideologia, que vê na escola 'a escola do conhecimento e do mérito burgueses', as crianças das classes sociais mais desfavorecidas estarão condenadas irremediavelmente ao insucesso. Logo, para ela, o saber, os conhecimentos que contam, a exigência e o mérito não são mais do que reveladores indesejáveis da distinção, da desigualdade, que a escola, afinal, apenas reproduzirá. Nada de mais verificadamente errado. As desigualdades sociais e pessoais são, como é óbvio, condicionantes - por isso a boa escola apoia especificamente os mais desfavorecidos para que se realize a equidade e todos possam ir tão longe quanto possível - mas não são um estigma. Querendo tornar todos iguais, a ideologia que se implantou, aberta ou insidiosamente, nas escolas portuguesas nivela por baixo, cretiniza, gerando a frustração e o abandono, aceitando a indisciplina e, por isso, semeando violência e intolerância, reproduzindo e agravando, ela sim, as desigualdades, condenando à exclusão e à pobreza as crianças que nasceram na exclusão e na pobreza. Impedindo que a escola seja, no grau que é justo e imperativo que seja, o ascensor cultural e social que só a escola pode ser. E numa escola dominada por esta ideologia, que diferença farão a alteração de programas, currículos e livros, a duração das aulas, as sucessivas reformas e mudança de ministros? É esta a questão central da educação. Enquanto não for frontal e declaradamente enfrentada não haverá mudança no sistema educativo e Portugal não progredirá. As medidas administrativas que têm sido elogiadas à ministra da Educação, adequadas ou discutíveis, são paliativos, mudarão muito pouco, não justificam a esperança".

* Antonio Gramsci, Cadernos da Prisão, XXIXX, 1932,
** João Pedro da Ponte, O ensino da matemática em Portugal: uma prioridade educativa?, O Ensino da Matemática: Situação e Perspectivas, Lisboa, CNE, 2003, p. 52.
*** Nuno Crato, O "Eduquês" em Discurso Directo , uma selecção de textos e intervenções que documentam o que vem sendo afirmado sobre as correntes pedagógicas em causa
. (Guilherme Valente, "Público", Dezembro de 2005)

(2008)

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