19 February 2009

O PODER DAS PALAVRAS



Silêncio absoluto. Concentração total. O público perfeito para um concerto de June Tabor. No mesmo instante em que a neve caía sobre o Sahara, na sala do S.Luiz, a atmosfera dividia-se entre a absorção completa por uma voz dedicada à narração de histórias de "love gone wrong" e o calor dos aplausos. Tradição e modernidade, clássicos do jazz, da Auvergne e da Escócia, "happy ends" improváveis e lendas de ciganos sem destino. Três horas antes, no interior de um camarim gelado, devotara-me a aprender as razões por que, um pouco depois, "I've Got You Under My Skin" iria significar algo mais do que apenas um título de uma canção de Cole Porter.

Começou por cantar música tradicional a capella, a pouco e pouco foi-lhe acrescentando algum apoio instrumental, depois, retirou-se. Quando regressou, gravou um álbum de temas de jazz e, logo a seguir, outro diferente com a Oyster Band. Qual é, afinal, o rumo musical da sua carreira?
Durante o tempo em que, para além de cantar, mantive um outro emprego, o meu reportório permaneceu mais ou menos igual. De repente, tudo se alterou: não só me dediquei profissionalmente à música a tempo inteiro como Martin Simpson (o guitarrista com quem trabalhava) foi viver para a América. Tive, por isso, de encontrar outro companheiro de trabalho, o Huw Warren, que, com o seu background de jazz moderno e música experimental, me fez descobrir outros tipos de música, tentar outras direcções e me propôs um desafio. À maioria das pessoas, isso acontece por volta dos 20 anos; a mim, foi um pouco mais tarde... Mas sempre olhei para as canções do ponto de vista das palavras, sempre me encarei como alguém que canta canções que contam histórias.



Penso que Angel Tiger é a progressão lógica de todos os álbuns anteriores a solo, que absorveu todas as influências de jazz e do trabalho com a Oyster Band, tanto na forma de expressão e na escolha do material e arranjos como na interpretação das canções. Para mim, cantar tem de ser um processo de desenvolvimento e descoberta permanentes, senão aborreço-me. A única constante é o poder das palavras, venham de onde vierem, e, naturalmente, a transparência e sobriedade dos acompanhamentos. Use quantos instrumentos usar, têm apenas de sublinhar o sentido dos textos.

Como é que passou do reportório a capella à primeira experiência das Silly Sisters?
No fim dos anos 60, princípio de 70, quando estava na universidade, em Oxford, ouvi os Fairport Convention e os Steeleye Span e, embora gostasse imenso deles, não era esse, então, o meu caminho. Preferia cantar sem acompanhamento. Foi só por volta de 1973 que, por puro divertimento, comecei a cantar com a Maddy Prior, dos Steeleye Span, e, pela primeira vez, utilizei alguma forma de acompanhamento. O que me ensinou imenso acerca de outras vias a experimentar. Essa experiência (de que só em 76 saiu a gravação) e o meu primeiro disco com o Nic Jones e o John Gillespie foram o início do meu trabalho com outros músicos e instrumentos.

Hoje, acha que já é limitativo chamar-lhe "folk singer"?
Não me considero "folk singer". Foi dessa área que vim, continuo a cantar canções folk mas, no universo da língua inglesa, essa é uma expressão demasiado limitativa que autoriza imediatamente ideias preconcebidas acerca da música que praticamos. Digamos que sou apenas alguém que canta canções com palavras fortes que é preciso escutar com atenção, com imagens intensas, relevantes para a vida de hoje. Não vistas como peças de museu que é preciso preservar. Claro que é isso que acontece com os melhores exemplos de música tradicional. São intemporais. Todas as canções que escolho têm de me provocar uma reacção: arrepiar-me, fazer-me chorar ou até fazer-me rir que é uma coisa que há quem não acredite que eu faça!...



Mesmo neste último disco pareceu-me continuar a ver uma certa desconfiança sua relativamente ao uso dos instrumentos. Como se, de certa forma, continuasse a cantar a capella... com instrumentos...
É porque, no género de canções que canto, a função dos instrumentos é criar silêncio à volta das palavras, não as submergir. Mas "canções a capella com instrumentos", essa é muito boa... Posso usá-la?

À vontade... (risos) Por outro lado, a sua voz, de disco para disco, tem-se tornado mais grave e ganho maior profundidade. Foi um aspecto que trabalhou ou apenas um processo natural?
Foi um processo natural, uma questão de aprender a cantar, cantando. Não tive formação musical académica. Por isso, tive de descobrir como comunicar através da voz, como utilizá-la enquanto forma de representação. Quando comecei, possuía a capacidade técnica essencial mas ainda me faltava a dimensão das emoções.

É uma voz em que há uma mistura de frio e calor, lisa, sem vibrato, que, por exemplo, em "Useless Beauty", de Elvis Costello, abre as vogais e como que cospe as consoantes...
É sempre difícil descrevermos a nossa própria voz. Se eu quisesse, podia ornamentar uma canção até fazê-la desaparecer ou cantar soul, mas isso não me diz nada, é só técnica. Da forma como canto, prefiro ser mais directa, transmitir emoções sem as dissimular.

Some Other Time, o seu disco de "standards" de jazz, não foi muito bem recebido...
De um modo geral, foi bastante mal compreendido. Terá começado pelo erro que foi gravarmos primeiro o álbum e só depois trabalharmos as canções em profundidade. Se tivéssemos levado mais um ano e o processo tivesse sido o inverso, as interpretações talvez tivessem sido mais amadurecidas. Depois, acontece que, com certas pessoas, basta dizer a palavra "jazz" e elas fogem, em pânico. O que é uma pena pois há imensa riqueza de canções no reportório do jazz, canções que não são apenas uma sequência de palavras a separar dois solos, como muitas vezes parece... O que fiz foi apresentá-las sob o meu ponto de vista, mostrar as imagens que contêm, tais como as da música tradicional ou outras quaisquer. No fundo, só peço ao público que confie em mim e não se peocupe demasiado em saber de onde vêm as canções.



Para si, que se iniciou com aquilo a que poderíamos chamar a "música étnica" britânica, a actual explosão da "world music" nunca a tentou a experimentar outras músicas não-europeias ou ocidentais?
Para o fazer, teria de deixar de atribuir o papel principal às palavras, uma vez que deveria cantar em idiomas que não domino. É verdade que, há bastante tempo, eu e a Maddy Prior chegámos a cantar em búlgaro. O primeiro álbum das Silly Sisters tem algumas influências desse estilo de canto balcânico, por exemplo, nas harmonias de "Four Loom Weaver". Pode também ser interessante incorporar elementos instrumentais de outras culturas. Mas, em última análise, cantar em línguas que não entendo não é o que me apetece mais fazer.

Costuma cantar uma série de autores que não são muito conhecidos fora das ilhas britânicas, como Michael Marra, Les Barker ou Bill Caddick. Pode dizer-me alguma coisa acerca deles?
Michael Marra é frequentemente chamado "o Randy Newman escocês". É um militante nacionalista e socialista e um autor muito carismático e sarcástico que trabalha bastante em teatro com uma companhia de Glasgow. "Happed in Mist", a canção que canto em Angel Tiger, tem a ver com o fascínio dele pela Primeira Guerra Mundial. É inspirada num romance clássico escocês, Scots Quair, uma trilogia de Lewis Gibbons. O Les Barker é mais conhecido em Inglaterra pela sua faceta de poeta cómico. Há algum tempo, começou a escrever paródias de canções pop e tradicionais e, a partir daí, surgiu-lhe a ideia de compor uma ópera feita de melodias gaélicas (escocesas e irlandesas), com textos em inglês, sobre o despovoamento das Ilhas Hébridas. Deu origem a um duplo álbum, The Stones Of Callanish, e fê-lo continuar a escrever canções "sérias". É, verdadeiramente, o que nós chamamos um "wordsmith", um artesão das palavras. Do Bill Caddick, já gravei cinco ou seis canções, como "Aqaba", sobre o Lawrence, que deu o título a um dos meus álbuns. Mas todos eles escrevem o tipo de canções que me atrai em termos de economia dos textos. Quanto mais canções escuto mais gosto das que não contam a história toda, oferecem só pistas de leitura e nos permitem exercitar a imaginação.

É por isso que acabou por não ser uma enorme surpresa ter gravado "Useless Beauty", de Elvis Costello, que, segundo parece, já era seu admirador...
É verdade, tinha-me feito elogios na imprensa e, no final de um concerto em Dublin, veio ter comigo, apresentou-se e disse-me que como, pelos vistos, nenhuma canção dele me tinha ainda agradado, era melhor escrever-me uma propositadamente. Quase um ano depois, quando estava a preparar-me para as gravações de Angel Tiger, lembrei-me dessa promessa e telefonei-lhe. Faltavam-lhe cinco dias para entrar em estúdio com o Brodsky Quartet e disse-me que ia ver o que conseguia fazer. Cinco dias depois, mandava-me a canção. Não tive de lhe mudar uma palavra, era perfeita, cheia de níveis diferentes de interpretação, um autêntico argumento de cinema em potência.

(1993)

4 comments:

Táxi Pluvioso said...

Temos que lobbar (de lobby na límgua do imperador santo) para que a próxima canonização seja Kaúlza de Arriaga.

fallorca said...

João, nem um youtubinho pra te gamar?

João Lisboa said...

Your wish is my command.

Anonymous said...

Por cá, vi-a no RIvoli, por esta altura. Memorável. E lançou o olhar mais fulminante que jamais vi a um fotógrafo de imprensa que, deliberadamente, ousou, por provocação, desafiar o pedido feito por ela minutos antes de não fotografarem durante o espectáculo. Não interrompeu a actuação, mas julgo que pouco terá faltado. E nada sei do destino posterior do fotógrafo, se vítima de mau-olhado se não...

Mas - lamento a insistência! - o entusiasmo neste momento vem da redescoberta de um Brian Eno em forma em 2006 no, salvo melhor opinião, fantástico tema The Airman (via o apontador que forneci ontem), que se ouve e reouve e se gosta muito e só se lamenta a qualidade do som não ser excelente... E não ter estado em Bath naquela data.
E que bem que ainda soam hoje 1/2 e 2/2... Pena é que no BE de hoje se (enfim, eu) tenha que ser mais selectivo, quando antes era quase tudo sempre da melhor colheita.