25 May 2009

NÃO PARAR DE DAR AOS BRAÇOS



Na contracapa de Um Fim de Semana no Pónei Dourado, do lado direito do logo da FlorCaveira, lê-se “Religião e panque-roque desde 1999”. E, à esquerda, “Advertência: este fonograma não contém ortodoxia cristã”. Teve de ser assim mesmo – com humor e ironia necessariamente incluídos – porque, na menos canónica editora Baptista do planeta, B Fachada, como ele próprio confessa, é “o pagão da FlorCaveira”. Foi também a “contratação” mais tardia do plantel. Desafiado por um amigo a assistir a um concerto de Tiago Guillul, hesitou, desconfiou mas “cheguei lá e confirmei, assim com os olhos esbugalhados. Aquilo custou-me muito a engolir. No entanto, não há volta a dar em relação aquele disco. É completamente consistente, pop é pop, não tem de ser sério nem tem de ser a brincar. Até porque me deparo também, às vezes, com esse problema das pessoas que não conseguem lidar com o tragicómico, de falar a brincar de coisas sérias ou o inverso”.



Tem, aliás, as referências e as coordenadas musicais muito bem arrumadas: “Eu divido a música em três: a erudita, a tradicional e a pop. A erudita e a tradicional são artes e a pop é artesanato. A erudita e a pop têm autores individuais e a tradicional tem um autor colectivo. Na tradicional, interessa-me muito o processo do inconsciente colectivo; na erudita, os métodos de construção, para jogar e brincar com eles; e, depois, da pop, que foi o que ouvi mais frequentemente (embora, hoje, escute mais música erudita), é que me vem a memória colectiva. Estou no meio deste triângulo a ser puxado para um lado e para o outro. Que era, mais ou menos, o que o Frank Zappa fazia. Claro que ele era uma figura quase genial (não gosto de dizer genial porque ele trabalhava quinze horas por dia, aquilo não lhe saía do cachimbo)...”. Do que decorrem, inevitavelmente, um método e um plano: “De pop, normalmente, oiço um disco de cada coisa: o Pet Sounds (e mais nada dos Beach Boys), o Sargeant Pepper’s (e mais nada dos Beatles), do Zappa e do Tom Waits, tudo, dos Magnetic Fields, basta-me o 69 Love Songs. Mas o que escuto mais avidamente é música erudita e jazz. Na maneira de trabalhar, o meu role model é o Zappa. Porque, a nível musical, não sei muito bem de onde vêm as melodias, as harmonias… sei que, às vezes, tento puxar para a Nina Simone que é a minha referência escondida, tenho quase vergonha de dizer que a tomo como referência, ela canta e toca tão bem... ‘isso querias tu!...’ Mas importantes são o Zappa e o Waits, no artesanato, no labor, na cena de ‘toco muito e, se der aos braços, venho à tona’. Não posso é parar de dar aos braços, sempre a escrever canções, a fazer dois discos por ano... já tenho as gravações e o lançamento do segundo disco marcados”.



Não seria obrigatório mas isso está tudo muito bem explicadinho num dos temas do álbum, “Zappa Português”, uma das várias personagens cujo nome próprio é título de canção. Como é o caso do “Zé” (“Chamo-me Zé, vim para aqui a pé e agora tenho um Cadilac”), criatura autárquico-arrivista que auxilia a desvendar a minúcia do método de B Fachada, estudante de literatura em modo-escritor de canções: “O nome da personagem é estudado, a maneira como fala, o primeiro e o último verso, a ordem das palavras, o centro da canção, todas essas coisas são pensadas. É uma personagem económica, tem de ser definida através de muito pouco, cada palavrinha tem de servir aquela ficção. É uma canção acerca de um animal que vence na vida e está contente com isso”.



Do triângulo pop-erudita-tradicional, é a última que, decididamente, lhe espevita o discurso: “A música do mundo, como as outras músicas, sempre fez parte da minha formação. Mas, a certa altura, tive o contacto com a literatura tradicional portuguesa e com o Romanceiro e foi isso que despertou em mim o interesse pela tradição enquanto processo, pela maneira como a tradição oral funciona enquanto biblioteca de um conhecimento comunitário, que é um tipo de conhecimento muito específico que não funciona através de regras, nem por raciocínio, ideia ou argumento. É uma coisa que flui muito directamente a um nível animal do humano, em que a componente social parece ser aí incluída”. Um pouco depois de ter andado a estudar a tradição, o realizador Tiago Pereira convidou-se para fazer um documentário sobre ele: “Achei que ele estava a gozar comigo. Insistiu e explicou que o queria fazer porque achava que eu ‘era a tradição oral contemporânea’, um conceito que ele tinha inventado. Aquilo bateu-me porque fiquei com a ideia de que ele estava, mais ou menos, a entender o que eu faço. Aliás, no fim do filme, ele explica que se dirigiu a mim porque ouvia as minhas canções e tinha a sensação de já as ter ouvido antes”.



Foram para Trás os Montes onde, próximo de figuras locais como Adélia Garcia (“que há trinta e tal anos tinha sido gravada pelo Giacometti”), cantou e ouviu cantar. “Ao contrário do que nós pensamos, ela tem uma noção perfeita do que é a tradição oral e do que é armazenar aí conhecimento. Ela cantava um romance com quinhentos anos, que ela sabia que tinha quinhentos anos, e, logo a seguir, cantava um fado da Amália que tinha ouvido na televisão, de que tinha gostado e que tinha decorado. Já tinha variado tudo – letra, melodia, tudo – mas cantava-o. O que é, evidentemente, o método tradicional. O Tiago diz que chegou ao fim do documentário com a sensação de que, se a Adélia vivesse em Lisboa, gravava discos para a FlorCaveira e era autora. E, se eu vivesse em Caçarelhos, não era autor e cantava o Romanceiro. Na cidade, tenho esta pressão ocidental, estúpida, para ser original e para criar e ela não: está no meio de uma comunidade e a pressão é apenas para expandir, receber e filtrar o conhecimento da comunidade. Ensinou-me também algumas canções como a ‘Dona Filomena’ que canto neste disco. A verdade é que dei um concerto no castelo de Algoso para as pessoas da aldeia, expliquei que ia cantar canções minhas que, em vez de histórias dali, eram histórias de Lisboa e, com as minhas heresias e as minhas canções eróticas, acharam aquilo perfeitamente normal. Era a história da experiência de uma personagem qualquer, num sítio qualquer”.

(2009)

5 comments:

Anonymous said...

Do you have no Land? Do you want no Rotine? Do you you want to Run Away from the stress of the big cities? Do you want to hear the music of Your Soul?

GO TO Trás-os-Montes and Look for the Portuguese Zappa men. You'll find The Happinness and the Truth that you were Waiting for Sooooooooo Long.

Trás-os-Montes The Dream in YOUR Nearby.

Find Portugal. Find Trás-os-Montes. We're Waiting For YOU.

sophia

João Lisboa said...

Há só aí um pormenor que falha nesse plano, Sophia: "Trás-os-Montes" não fica no ouvido. Era preciso assim uma espécie de "Allgarve" para resolver isso.

Se fosse o Ribatejo, podia pensar-se em "Ribatexas" (campinos/cowboys, homens-a-sério, gajas, touros e coiso): agora, para Trás-os-Montes a coisa não é simples.

Anonymous said...

o home vai ser um cristo: deiam-lhe 5 anos e vao ver.

Anonymous said...

É verdade.

Com pesar reconheço que "Behind the Hills" não constitui sequer uma opção válida. Região condenada à partida. Excelente candidata ao regionalismo.

sophia

Lola said...

Genial é estar em Trás-os Montes e lhe cair um monte de maçãs na cabeça.

Divido a música em três partes?

Quando não se sabe usar as palavras, o negócio é falar besteira. Quanto mais melhor, mas nunca esquecer de mencionar erudito, Zappa e jazz.
Tão cult!