19 July 2010

ESPELHOS QUEBRADOS



Pop Dell’Arte - Contra Mundum




Abztraqt Sir Q - Extimolotion




Zelig - Joyce Alive!

Em 1983, Woody Allen criou a personagem Leonard Zelig, singular "camaleão humano" das décadas de 20 e 30 do século passado, capaz de, em virtude de uma incomum disfunção psíquica, involuntária e dolorosamente, mimetizar os traços de personalidade e os maneirismos sociais daqueles com que convivia. Começava a sua trajectória como freak circense e acabava na qualidade de herói de guerra mas – é da própria natureza das melhores histórias – não se ficaria pelas salas de cinema a sua peculiar condição. Exactamente da mesma forma que, dois anos depois, em outro filme de Allen, A Rosa Púrpura do Cairo, Jeff Daniels saltava do ecrã para o mundo real, o "síndroma de Zelig" - uma raríssima forma de perturbação cerebral – seria identificado, em 2007, por uma equipa de cientistas italianos dirigida por Giovannina Conchiglia. Não desistam de ler já: no quinto episódio da quarta temporada da série Dr. House (“Mirror, Mirror”), a um doente era diagnosticado o "síndroma de Giovannina", versão retorcidamente televisiva do Zelig original. E, por estes dias, há quem fale de um "síndroma de House", problema com que os médicos apenas humanos têm de lidar face à desconfiança dos doentes que não descobrem neles o poder dedutivo, sherlockianamente sobre-humano, do intratável figurão representado por Hugh Laurie. O qual (House, não Laurie), dizem as más línguas, sofrerá do "síndroma de Asperger". A arte imita a vida que imita a arte que imita a vida que imita a arte que imita a vida...



Para o que, agora, realmente, interessa, por diversos motivos, Zelig dá imenso jeito. Em primeiro lugar, porque uma das bandas portuguesas de que, aqui, se falará responde pelo nome de Zelig. E não inocentemente: são eles mesmos quem confessa que “a nossa música tem uma influência muito forte de muitos géneros diferentes. É uma música que se transfigura muito e passa por muitas mutações” e reivindicam Zelig-personagem como “metáfora da influência que as coisas exercem umas sobre as outras”. Depois, porque, tanto no caso deles como no dos Pop Dell’Arte e dos Abztraqt Sir Q, coexistem, em simultâneo, o impulso para a permanente transformação e a recusa de se deixarem indistinguir da atmosfera musical circundante. Por outras palavras, todos são Zeligs para si mesmos mas sobressaem, violentamente, no cenário, quais bizarras e inclassificáveis criaturas. Porque cometeram a proeza de reinventar a roda da gramática musical? Não, apenas porque, nesse toca-e-foge de mimetismo/antimimetismo, optaram pelo jogo de reflexos sobre espelhos quebrados e, sabiamente, recompuseram os estilhaços segundo as regras de uma (des)ordem muito pessoal e privada.



Prioridade, então, aos veteranos. Mas pela única razão de que, na circunstância, os Pop dell’Arte funcionam, de modo ideal, como precursores e elo de ligação – estético e ético – em relação aos outros dois grupos. Quixote romântico da segunda vaga do pop/rock luso, editor, com a independente Ama Romanta, de múltiplos embriões de muito e nada (Mler Ife Dada, Sei Miguel, Croix Sainte, Nuno Canavarro, Tó Zé Ferreira, Pascal Comelade, Mão Morta...), ao leme do "bateau-ivre" Pop Dell’Arte, João Peste inventou o equivalente musical de um jornal que somente é publicado quando tem, de facto, notícias relevantes para dar – de 1986 até hoje, pelo meio de singles, EP dispersos e compilações, apenas três álbuns: a memorável estreia de 1987, Free Pop (isso mesmo que o título insinua: a atitude libertária do free-jazz transposta, via Duchamp, Warhol e descendência para o universo-pop) e os quase nada menores Ready Made (1993) e Sex Symbol (1995). Pelo que, quinze anos depois, Contra Mundum seria sempre motivo de celebração. Acresce, entretanto, que não se trata, exclusivamente, de saudar o regresso do Pierrot Lunaire trágico da pop nacional: centrados no núcleo resistente Peste/José Pedro Moura, os Pop Dell’Arte que, de novo, escutamos reiniciam a jornada interrompida e voltam ao laboratório subterrâneo onde dão vida aos psicadelismos fadistas, às fanfarras eléctricas, aos arraiais weillianos e à poeticamente perversa candura de palavras e melodias estropiadas em bailado demente de que só eles conhecem o segredo.



É fácil relacionar os Pop Dell’Arte com os muitíssimo mais novos Abztraqt Sir Q. Desde logo, porque algum motivo terá havido para que João Peste (não propriamente uma guest star de serviço) tenha aparecido como convidado do seu óptimo álbum de estreia, Qorn Pop Garden, publicado no final de 2008. A afinidade que, então, já se pressentia – a costela teatral e operaticamente excessiva, os malabarismos linguísticos poliglotas, a veia experimentalista domesticada pelo vício pop – confirma-se integralmente mas, desta vez, em Extimolotion, aprofundando a morfologia ossuda das canções, o perfil esquinado das melodias e o solavanco rítmico como forma superior do riff, numa espécie de depuração última do pós-punk, filtrado através de trinta anos de história, alguma erudição e um prazer evidente em construir diagramas sonoros a três dimensões e bastante mais variantes cromáticas.



Os Zelig, enfim, são o improbabilíssimo lugar geométrico onde gente oriunda dos Ornatos Violeta, Pluto, Drumming, Dep, Electric Buttocks, Tchakare Kanyembe, Foge Foge Bandido e tropelias punk hardcore paralelas tropeça em Sun Ra, nos Naked City, em John Barry e Frank Zappa e, armada de marimbas, vibrafones, contrabaixo, flauta, teclados, percussões, serrote, guitarra e uma devastadora secção de sopros de faca nos dentes, capaz de passar a ferro uma seara, vai-se estatelar gloriosamente muito próximo da terra de ninguém onde, num hipotético momento de repouso, a Flat Earth Society de Peter Vermeersh e seus pacientes de Tourette associados recupera o fôlego, após mil refregas sonoras. António Serginho, Eduardo Silva, José Marrucho, Nico Tricot e Pedro Cardoso – muito conservatório, muito currículo de jazz, rock e ruídeira marginal afim – estão prontos para, caso seja necessário, operar como reserva estratégica da brigada de combate flamenga: as coordenadas do terreno conhecem-nas de cor e não têm a alma menos engarrafada de sonhos de Morricone em pagodes chineses, de surf bands flutuando em jangadas de juncos no Sahara, de James Bond correndo por entre semifusas numa animação musicada por Carl Stalling ou de cenas tórridas de Rita Hayworth nos braços de um mullah de Andrómeda. Não duvidem por um só segundo: com um máximo de prontidão, esse será sempre o mínimo que deles poderemos esperar.

(2010)

6 comments:

Unknown said...

Só pelo nome, Zelig, já tinham a minha simpatia. Ouvindo a música ´(pela primeira vez, agora), já me despertaram a total necessidade de ouvir o disco. A referência a FES está muito bem encaixada.

João Lisboa said...

Foi o único tubo minimamente audível (mas, ainda assim, com uma captação de som desgraçada) que descobri. Se aparecerem outros melhores, é favor avisar.

Lugones said...

Destes 3, só conheço o novo disco dos Pop Dell'arte. É surpreendentemente bom, tendo em conta que já ninguém estava à espera que lançassem o tal álbum. Lançaram-no mesmo, e é bem melhor do que o novo dos Mão Morta, por exemplo.
O concerto (de apresentação?) do novo álbum, dado no Music Box, também foi excelente.
Pena que a imprensa e a blogosfera não tenham falado do assunto, por estarem demasiado entretidos com os mega-hiper festivais de Verão.
João Peste, apesar do aspecto débil, cantou que se fartou.

Anonymous said...

Só ouvi o dos Pop dell'arte, que é uma semi-desilusão - quatro bons temas (nenhum memorável, infelizmente - e o resto nem aquece nem arrefece. um deles é mesmo de um mau-gosto inacreditável (aquele em que o Peste começa por dizer o dia e a hora - não tenho aqui o disco e tenho preguiça de me levantar :-) ). Inacreditável á a reacção da crítica - o único tipo mais comedido foi o Bonifácio (coisa nada dele, aliás, que é um hiperbólico!)
o excerto dos zelig é bastante interessante e promete (embora demasiado naked city / FES?)...
Jorge Andrade

Anonymous said...

A melodia deste Contra-Mundum faz lembrar muito o Dama Dada dos Cool Hipnoise. Não estou a dizer mal da canção, até gostei...

Anonymous said...

http://www.youtube.com/watch?v=_7DrrbamYTc