03 August 2010

FALA AQUILO QUE SÃO



Lula Pena - Troubadour

O processo é um pouco como o que ocorre com a recitação do "dhikr" islâmico, do "aum" indiano ou do rosário cristão: Lula Pena deixa-se levar pela entoação auto-encantatória das palavras estimulada pelo dedilhar da guitarra, até que voz, cordas e textos sejam uma só coisa e, desta forma, um canal se abra para o mais absolutamente livre jogo de associação de fragmentos de melodias, estilhaços de poesia, auras de harmónicos, arquejos rítmicos, percussões cardíacas. Se, há doze anos, em [Phados], perdíamos o pé na constante ondulação da rota sonâmbula por que Lula nos conduzia, em Troubadour, a sensação não é menos intrigante:



como quem reescreve um interminável palimpsesto, Chico Buarque, José Afonso, Atahualpa Yupanqui, Herberto Hélder, Frederico de Freitas, David Mourão Ferreira, Eden Ahbez, Dolores Duran, Mirah ou Alejandra Pizarnik cavalgam-se, rasuram-se, sobrepõem-se, mutilam-se, elidem-se e procriam, numa hipnótica encenação, possivelmente dividida em sete actos, mas que deverá ser experimentada de um fôlego único. Nas “chaves de leitura” dispersas pela capa do álbum, a primeira alude, naturalmente, à caixa de Pandora e o pano ergue-se sobre o som de uma gaita de amolador e de um diálogo de rua onde alguém, programaticamente, determina: “Vê se falas aquilo que é”. Durante os seguintes seis actos, Lula “fala aquilo que são” as silhuetas de todas estas personagens, numa polifonia para uma só voz. Segundos antes de o pano cair, murmura-nos: “Meu amor?... Sim, diz… Já disse”. Tudo isto teve lugar a 10 de Janeiro, nos estúdios Golden Pony, em Lisboa. Noutro qualquer dia, em lugar diferente, Troubadour teria outro destino e falaria com outras vozes.

(2010)

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