09 May 2011

FIDELIDADE


Em 1957, Miles Davis, apaixonado por Paris e por Juliette Gréco, deixou que esta lhe apresentasse Louis Malle, jovem aspirante a realizador de cinema, que se preparava para dirigir a sua primeira longa metragem, um "noir" gaulês de título Ascenseur Pour L’Échafaud que também assinalaria a entrada de Jeanne Moreau em território da "nouvelle-vague". Como Miles contaria, “Porque nunca tinha composto para um filme, assistia aos visionamentos e, daí, surgiam-me ideias musicais. Uma vez que era acerca de um crime e, supostamente, um filme de suspense, utilizei um velho edifício escuro e lúgubre para tocar com os outros músicos [Barney Wilen, Pierre Michelot, René Urtreger e Kenny Clarke]. Pareceu-me que proporcionaria a atmosfera adequada e, realmente, foi isso que aconteceu”. Incidentalmente, o clima de distensão e liberdade formal de que aí gozou viria a gerar o caldo de cultura de que nasceria o clássico Kind Of Blue (1959) e, por oblíquas esquinas da história da música e do cinema, estaria na matriz do que seria a relação entre os Tindersticks e a realizadora Claire Denis.



“Sim, Ascenseur Pour L’Échafaud foi, de facto, um dos nossos primeiros pontos de referência. Apetecia-nos, enquanto grupo, poder estar num espaço a assistir ao filme e ser-nos oferecida a oportunidade de lhe reagirmos musicalmente. Claro que, como músicos, não somos exactamente o Miles Davis mas a ideia inicial andou muito próximo disso”, confirma Stuart Staples que, com a banda, actuará no IndieLisboa interpretando a música que compuseram para os filmes de Denis. E o procedimento foi, igualmente, semelhante: “Temos acesso a esboços do argumento, por vezes há oportunidade de ver algumas imagens de sequências já filmadas o que nos permite ir aferindo o modo como a atmosfera da música e do filme se ajustam ou não. O mais difícil e o mais gratificante no nosso trabalho com a Claire Denis é que ela, nas conversas que temos, nos dá toda a informação necessária acerca do que anda à procura e do que desejaria encontrar mas, depois, deixa-nos inteiramente livres para podermos descobrir os caminhos que aí conduzem”.


Por algum motivo estes encontros acontecem. Como Stuart confessa “Quando encontrei o David Boulter – três ou quatro anos antes de termos constituído os Tindersticks – o que nos atraiu foi o universo das bandas sonoras para cinema. Por isso, quando a Claire nos convidou isso pareceu-nos absolutamente natural”. Não que, de algum modo, o grupo reclame erudição sobre a matéria da "film-music" e das complexas mecânicas de bastidores que a relação entre imagens e som exige para urdir infinitas teias de sentidos: “Tínhamos alguns pontos de referência mas nenhum conhecimento profundo. A forma como nós trabalhamos tem a ver com a criação de música a que se reage emocionalmente. E, de certa forma, isso transportou-se para a nossa escrita para o cinema”. A verdade é que, numa daquelas não demasiado frequentes relações monogâmicas entre realizador e compositor, desde há seis filmes que a colaboração persiste e, mesmo admitindo trabalhar com outros cineastas, Staples sublinha: “Acima de tudo, trata-se de uma questão das ideias que estiverem em jogo, e, depois, da empatia que sentirmos com o realizador. O mais importante, no entanto, é a sensação de liberdade de que desfrutamos com a Claire, termos consciência de que a nossa imaginação é um espaço aberto.É por isso que não nos consideramos, realmente, compositores de música para cinema. Respeito-os imenso mas, connosco, isso só funciona porque existe uma confiança ilimitada na relação que temos com a Claire. Envolvemo-nos imenso com todos os filmes dela embora me pareça que o último (White Material, 2009) correu particularmente bem”. Relação inclusivamente terapêutica cuja influência se faz sentir na saúde estética da banda por via do que compor para o cinema lhes determinou internamente: “Sem dúvida que foi importantíssimo. E isso tem tudo a ver com a própria Claire Denis. O facto de nos obrigar a reavaliar e debatermo-nos com a forma de apresentar as nossas ideias nesse novo contexto, foi uma das motivações para que continuássemos a existir enquanto banda”.

(2011)

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