13 September 2011

É SEMPRE MELHOR A SURPRESA



Sérgio Godinho - Mútuo Consentimento

Exactamente quarenta anos depois de Os Sobreviventes (e, já agora – que o ano de 1971 foi um verdadeiro separador de águas para a música portuguesa –, também após Mudam-se Os Tempos, Mudam-se As Vontades, de José Mário Branco, e Cantigas Do Maio, de José Afonso), é inteiramente oportuno perguntar: que é que tem o Godinho que é diferente dos outros? Não se trata, naturalmente, de estabelecer hierarquias (no "rating" da República, os títulos e acções de qualquer um desses três são um indiscutível "triple A") mas de procurar identificar os traços que, desde o início, o distinguiram nesse movimento crucial que muito bem poderia ter sido designado (por mais do que uma boa razão) como "nouvelle vague". Partilhando a atitude e o posicionamento político (em poucas palavras: anti-Estado Novo) a que a época, quase instintivamente, obrigava quem não desistia de fazer uso do cérebro e se dava mal com o paroquial e beato provincianismo luso, Sérgio Godinho e Zé Mário, de Paris (e do resto do mundo) para Portugal, irromperam, tanto em contraste nítido com a estética das cançonetas nacional-senis do “regime” como com o bocejante baladeirismo “contestatário” de transviada e tardia descendência folk transatlântica (tratando José Mário Branco de, por arrasto e no cargo de produtor de Cantigas Do Maio, contagiar José Afonso). Sérgio, contudo, já na altura, sem abdicar do minucioso trabalho sobre os textos, era, ainda que com vestígios francófilos da "chanson", muito claramente, uma criatura da cena propriamente pop/rock anglo-americana, mais hippie/yippie do que militante alinhado, mais Dylan do que Pete Seeger. Isto é, o tipo de escritor de canções sobre quem a passagem do tempo – mesmo que, aqui e ali, lhe carimbe, indelevelmente, uma data – tende a ser generosa.



Cerca de três dezenas de álbuns – entre registos de originais, ao vivo e compilações – mais tarde, bastará passar os olhos pela plateia de um concerto de Sérgio para nos apercebermos de como “transgeracional” é o seu nome do meio. E, para tal, não contribuíram só as múltiplas vidas que, do estúdio para o palco e de volta ao estúdio, foi insuflando em parcela importante do seu cancioneiro (nada de cirurgias plásticas para passar rugas a ferro: apenas um processo natural de mudança permanente) mas, principalmente, o trabalho e colaboração com sucessivas gerações de músicos-cúmplices, espécie de transfusão de sangue contínua capaz de manter elevado o metabolismo criativo. Exemplo maior disso foi O Irmão Do Meio (2003), magnífica revisão de carreira em formato de duetos (com Camané, Caetano Veloso, Xutos, Milton Nascimento, Jorge Palma, David Fonseca...) e, de forma constante, o convívio criativo com Nuno Rafael (Despe & Siga) e elementos dos Clã.



Mútuo Consentimento, primeiro disco desde Ligação Directa, de 2006, coloca, entretanto, um problema que será ou não aquele a que, em entrevista recente ao “i”, Godinho se referia: “As minhas canções têm muitas vezes (...) um tempo de apreensão relativamente longo. É-me dito recorrentemente que a primeira vez que as ouvem estranham e só depois é que se entranham. Mas gosto que seja assim. É pior quando entra à primeira e depois uma pessoa já está farta”. Dir-se-ia, porém, que, desta vez, numa equipa bastamente testada e lubrificada, o que, inexplicavelmente, encrava são os arranjos: "Mão Na Música", manifesto em "spoken-word", pedia mais do que "wallpaper" de fundo, "Bomba-Relógio" pesa toneladas em comparação com a elegância da versão que dela fez Cristina Branco, "Acesso Bloqueado" é Godinho-vintage mas mobilado de forma automaticamente previsível, o que se repete em diversas outras e se redime em "A Vida Sobresselente" (com Noiserv), "Dias Consecutivos" (na companhia de Bernardo Sassetti) e "Intermitentemente" (com Sassetti e a Roda de Choro de Lisboa). Por outras palavras: aqui, estranha-se o que imediatamente se reconhece e entranha-se o que surpreende. O que sempre foi o melhor de Godinho.

(2011)

4 comments:

menina Alice said...

Right on!

menina Alice said...

Até te digo mais, para mim, a Bomba-Relógio agora é da Cristina Branco.

João Lisboa said...

... tu não me arranjes mais problemas...

:-)

menina Alice said...

Prometo controlar-me, mas confesso que não está fácil isto. E é só porque estás a pedir com jeitinho.