30 September 2011

TESTAMENTO VITAL



Após meio século de uma vida a acompanhar Carlos Paredes e inúmeros outros cantores e músicos como Alfredo Marceneiro, Argentina Santos, Caetano Veloso, Amália Rodrigues, Pedro Caldeira Cabral, José Afonso, Chico Buarque e sucessivas gerações de guitarristas portugueses, Fernando Alvim – porque, tão simplesmente, dispôs, enfim, do tempo necessário para isso – gravou o seu primeiro álbum de fados e canções originais. E, como que para recuperar o tempo (não exactamente) perdido, fê-lo em formato duplo - Fados & Canções do Alvim - para o qual convocou uma espécie de concílio das vozes máximas da música portuguesa (de Carlos do Carmo a Ana Moura, Camané, Amélia Muge, Cristina Branco, Ricardo Ribeiro, Ana Sofia Varela, Vitorino, os irmãos Pedro e Hélder Moutinho... poucas ficam de fora). Chame-se-lhe “testamento” e “vital” e não se perca demasiado tempo a descobrir a música que Alvim esperou todos estes anos para revelar.

Porquê só agora este duplo álbum, Fernando Alvim?
Foi um projecto que surgiu há cerca de dois anos. Ao longo de toda a minha vida, sempre acompanhei e tive o tempo muito ocupado com espectáculos, ensaios, digressões. O que não me libertou grande margem para me poder dedicar à composição. Apenas, nos anos sessenta, tinha composto umas quatro ou cinco coisas pouco significativas. Nestes dois últimos anos, por questões de saúde, tive de parar e essa paragem fez-me pensar que dispunha de tempo para compor. Com a cumplicidade da minha mulher que sempre me entusiasmou nesse sentido, comecei a compor. A partir daí, surgiu a ideia de a quem se deveriam entregar essas canções. Tratou-se, então, de pensar no perfil e no estilo dos artistas e, à medida que compunha, convidá-los para participarem.

Pensava primeiro num cantor e só depois o convidava?
Exacto. Não resultou com todos mas, na grande maioria dos casos, sim. Vinham cá a casa, ouviam e aceitavam. Inicialmente, tinha sido pensado para incluir doze temas mas, a pouco e pouco, fui-me entusiasmando e ampliou-se até aos trinta e cinco finais (dezoito fados e dezassete canções). Depois, tive de ir perguntando aos cantores que poetas quereriam para as músicas já compostas.

Nunca seguiu o processo inverso de compor a partir de um texto?
Não. Eles sugeriam-me uns poetas, eu ia-os convidando. Às vezes, telefonavam-me para aqui à uma da manhã a dizer “Acabei de fazer a sua letra!” E nós íamos logo, avidamente, ao computador vê-la...


Fernando Alvim & Cristina Branco

Como é esse processo de compor a pensar num cantor em particular? Como modelou cada canção em torno das vozes, por exemplo, do Camané, da Cristina Branco, da Carminho?...
Ouvi os discos deles, familiarizei-me com o estilo de cada um. O Camané, por exemplo, veio cá a casa, ouviu e escolheu dois fados. Foi ele mesmo que falou logo daqui ao João Monge para lhe escrever as letras. Já com o Ricardo Ribeiro, tinha escrito dois temas para ele e estava convencido que ele escolheria um deles, de caras. Afinal, acabou por escolher o outro, houve qualquer coisa que lhe tocou mais nesse. O outro – "Pássaro Voz" – foi para a Ana Moura.

Fado, evidentemente, é fado. Mas, num momento em que as fronteiras entre fado e canção já não são tão acentuadas como antes, porquê, no próprio título do álbum, continuar a separar os territórios?
Procurei, nas canções, diversificar os estilos: compor um bolero, um tango, músicas que me marcaram ao longo da minha vida, nos anos cinquenta, sessenta, em que, além do fado, tocava outros géneros como o jazz, bossa-nova. Tinha um conjunto, o Nova Onda, que ia fazer os bailaricos ao Clube Naval de Cascais, nos fins-de-semana e também um programa com o mesmo nome na antiga Emissora Nacional em que, das coisas do Marino Marini ao jazz ou a João Gilberto, tocávamos tudo, inclusivamente, fado. Nesse programa, houve revelações como o João Ferreira Rosa, a Mercês Cunha Rego, a Teresa Tarouca ou o João Braga.



O Fernando Alvim, contudo, começou por ter formação clássica. Todo o resto foi descobrindo mais ou menos instintivamente?
Comecei por estudar violoncelo mas era um instrumento demasiado grande para mim, na altura... aprendi guitarra com o professor Duarte Costa e tudo o que veio a seguir foi, de facto, por instinto. Aprendi por mim, ia muito ao Hot Clube com o Luís Villas-Boas que, na altura, trazia muitos discos da América. Principalmente de guitarristas como o Barney Kessel, Wes Montgomery, Jim Hall... aquela torre de discos que está a ver ali, são os clássicos todos da guitarra de jazz.

Em que medida é que essa sua afinidade com o jazz se comunicou aos outros géneros que também interpretava?
Tocava, na Emissora Nacional (e no Hot, de vez em quando) com o Ivo Mayer e o Paulo Gil e isso, agora, veio a influenciar-me mas minhas composições. Mas tanto acompanhava o Carlos Paredes como diversos fadistas e procurava moldar-me aos diversos géneros.

No fado – tal como quando acompanhava o Carlos Paredes –, presta-se toda a atenção ao cantor e à guitarra portuguesa mas a viola de acompanhamento (passa-se o mesmo, de certo modo, no jazz e no rock, com o baixista) acaba por ser o herói oculto: sente-se-lhe a falta se não tocar mas, quando toca, raramente se repara nela. Como convivia com essa situação?
Convivia bem: procurava cingir-me à respiração do guitarrista, aos seus ritmos e balanços, o que se adquiria nos ensaios exaustivos de cinco horas por dia que fazíamos. Como ainda não tínhamos acesso a gravadores, tinha de ser tudo aprendido de memória. Concentrava-me na parte harmónica: ouvia as variações e tentava tirar a minha harmonia que se adequasse ao estilo do guitarrista. Na altura, essas harmonias tinham, às vezes, uma certa tonalidade de jazz que me parecia que combinava muito bem com o estilo de determinado tipo de variações do Carlos Paredes. De modo que as composições dele, a partir de determinada altura, foram evoluindo para outros campos diferentes daqueles que pisava quando começou a tocar comigo. O Carlos Paredes era, fundamentalmente, um clássico, não gostava de jazz.



Não gostava? Mas ele chegou até a tocar com o Charlie Haden...
Isso eu acho que foi um bocadinho para esquecer... (risos) mas, enfim... eu também toquei com eles, estivemos no Hot a tentar tocar umas coisas mas foi complicado: as linguagens são diferentes, a do Paredes não era uma linguagem jazzística...

Foi, então, uma experiência que correu mal?
Eu gosto de tal maneira da música do Paredes que tenho dificuldade em dizer isso. Mas o entrosamento com o baixo, as ideias de um e do outro que pediam uma linguagem comum mais explícita, isso acho que não correu muito bem.

Tanto nessa altura como agora, foi, naturalmente, prestando atenção aos executantes de guitarra portuguesadas diversas gerações que iam aparecendo. Sente que, desde então, houve alguma transformação na linguagem da guitarra portuguesa e do que isso implica no trabalho de acompanhamento?
Posso dizer-lhe que toquei com mais de cem guitarristas. Dos mais novos, admiro profundamente o Ricardo Rocha mas também o José Manuel Neto, o Bernardo Couto, o Custódio Castelo... houve uma grande evolução. Os acompanhamentos são muito mais variados, tirando partido de dissonâncias e inversões de tons. Há uma muito maior cultura musical o que lhes oferece uma enxada mais rica que se apoia em tudo o que os antepassados lhes deixaram para se inspirar.

(2011)

4 comments:

Táxi Pluvioso said...

Too old, mais old que o Ian Anderson, e as pessoas não são vinho.

João Lisboa said...

Tolice.

Táxi Pluvioso said...

Talvezice, para os consumidores de cultura, a mim a cultura é cena não me assiste.

João Lisboa said...

Ah pronto.