06 January 2013

AS CORES DA AMÉRICA 

 
















Woody Guthrie - Woody At 100 (3CD/livro) 

John Cage nasceu a 5 de Setembro de 1912. Woody Guthrie (muito revolucionariamente a propósito) a 14 de Julho do mesmo ano. Comemora-se, pois, em 2012, o centenário de ambos. E seria esse o único traço a ligá-los se não se desse o caso de, a 10 de Julho de 1947, Woody ter escrito uma carta à Disc Company of America louvando-a por ter publicado um 78 rotações com os solos para piano preparado de Amores, de Cage, interpretados por Maro Ajemian: “Recordo-me de, quando era miúdo, ter usado o piano da minha avó, um Price & Deeple vertical, para desencadear todo o tipo de guerras, nevoeiros, tempestades, batalhas, namoros, crescimentos e paixões. Sentava-me e, durante horas, não fazia outra coisa. Naquela idade, parecia-me não haver limites para o tipo de invenções de que um piano é capaz se for tocado pelas mãos certas. Deve ser por isso que oiço o que oiço quando ponho a tocar o vosso álbum #875. (...) Parece-me que John Cage (...) capturou e devolveu-nos uma floresta e um deserto de montanha cheios de coisas maravilhosas que, em 90% dos casos, seriam desprezadas ou ignoradas em benefício de outras menores. Penso que esta música para piano é uma lufada de ar fresco relativamente à forma como nos habituámos a ouvir o piano ser tocado. Música tão invulgar era o que me fazia falta para envolver o que, esta noite, me ocupava o espírito”. E, num post scriptum, rematava, informando que a mulher, Marjorie, tinha dado à luz um vigoroso bebé (Arlo Guthrie) de 3.175 quilos.



A "fan letter" de Woody não figura no majestoso "box set" (livro de 150 páginas/triplo álbum), Woody At 100, que a Smithsonian Folkways Recordings lhe dedica, mas inúmeros outros documentos – fotografias, desenhos, fac similes de textos, letras, capas de discos, cartas dactilografadas, programas de concertos, manuscritos, partituras – acompanham os três CD onde se reúnem 57 faixas, várias em versões raras ou inéditas (nomeadamente, as recém descobertas primeiras gravações de 1939), bem como os registos de programas de rádio (“The Ballad Gazette”, BBC e WNYC Radio) e "hootenannies". Em formato "hardback", não muito distante do que foi utilizado no igualmente magnífico The Bob Dylan Scrapbook, em dois ensaios, Robert Santelli (crítico de música e director do Grammy Museum) e Jeff Place (arquivista do Smithsonian) situam e analisam, de modo detalhado mas quase coloquial, os lugares que Woody Guthrie e a sua música ocupam no panorama da história e da canção popular (não exclusivamente “de protesto”) norte-americanas. E para que nenhum ponto fique por colocar sobre nenhum “i”, Santelli faz questão de recordar que a emblemática "This Land Is Your Land" não se resume à versão suavemente patriótica que, habitualmente, é interpretada, mas que, tal como a cantaram Bruce Springsteen e Pete Seeger, na cerimónia de inauguração da presidência de Barack Obama, em Janeiro de 2009, inclui dois outros versos (“As I went walking I saw a sign there, and on the sign it said "No Trespassing", but on the other side it didn't say nothing, that side was made for you and me” e “In the squares of the city, in the shadow of a steeple, by the relief office, I'd seen my people, as they stood there hungry, I stood there asking, is this land made for you and me?”) que iluminam bem melhor a personagem sobre quem John Steinbeck afirmou “Preciso de escrever um romance inteiro para dizer o que este filho da mãe diz em dois versos”



Steinbeck legou à América e ao mundo as suas Vinhas Da Ira e, no que deverá ser um milhar de canções, o homem que – como refere Jeff Place – , no momento em que, em 1941, Hitler quebrou o pacto germano-soviético, se juntou aos Almanac Singers, de Pete Seeger, e inscreveu na guitarra “This machine kills fascists”, ofereceu-lhe a banda sonora ideal para os terríveis anos da Grande Depressão, da miséria do Dust Bowl, das lutas sindicais, em melodias amassadas na cultura negro-branca do Sul. Phil Ochs, Springsteen, Billy Bragg, Tom Morello, Bob Dylan (“Todas aquelas canções, uma a seguir à outra, puseram-me a cabeça a andar à roda. Fiquei sem fôlego. Era como se a terra se tivesse dividido ao meio. Foi uma epifania, como se uma pesada âncora tivesse mergulhado nas águas do porto. Nesse dia, passei a tarde toda a ouvir Woody Guthrie, como se estivesse em transe. (...) Através das suas composições, a minha visão do mundo tornava-se muito mais nítida”, escreveu ele em Chronicles Volume I) e centenas de outros beberam da fonte que um tipo franzino e baixote – nascido no Wild West de Okemah, território Índio do Oklahoma – pusera a correr e que lhe fora mostrada desde cedo. Assim, como, ofegantemente, descrevia, na capa de American Folksong: “A minha mãe aprendeu todas as canções que os pais dela sabiam e muitas delas não eram escocesas nem irlandesas mas mexicanas, espanholas e outras criadas pelos negros, no Sul. Não havia apenas isto na música que ouvia à minha volta, porque o meu pai passava a vida a conversar, a dançar, a beber e a comerciar com os Índios. (...) A cor das canções era a do Pele Vermelha, a do Homem Negro e a da gente Branca”

2 comments:

Anonymous said...

Grande texto João Lisboa
Grande América

Táxi Pluvioso said...

O horror.