12 December 2013

NATURAL E FORMOSAMENTE HUMANA


Bryan Ferry nem sonhava no sarilho em que se ia meter (embora, talvez, devesse) quando, em Abril de 2007, numa entrevista à edição de domingo do jornal alemão “Die Welt”, elogiou o sentido da encenação e a espectacularidade do regime nacional-socialista de Adolf Hitler: “Falo dos filmes de Leni Riefenstahl, dos edifícios de Albert Speer, das grandes movimentações de massas, das bandeiras. Absolutamente fantástico. Verdadadeiramente belo". Instantaneamente, o mundo – dirigentes de comunidades judaicas, responsáveis políticos e clientes da Marks & Spencer, com quem Ferry celebrara um contrato de publicidade – caiu-lhe em cima. Razoavelmente embaraçado, o ex-estudante de Belas-Artes, logo no dia seguinte, apresentava "desculpas incondicionais por qualquer ofensa causada pelos meus comentários sobre a iconografia nazi, que foram feitos exclusivamente de um ponto de vista da história de arte” e fazia questão de sublinhar que “como qualquer pessoa sã de espírito, considero o regime nazi e tudo o que ele representou, maligno e abominável”. Verdadeiramente interessante é que, se, em vez de se ter referido à estética do nacional-socialismo, Ferry tivesse preferido falar do assombroso cinema de Eisenstein ou do glorioso "kitsch" das óperas da Revolução Cultural Chinesa (ambos armas de propaganda ao serviço de regimes responsáveis por um número de vítimas não inferior ao da barbárie nazi), é bem possível que a entrevista não tivesse provocado nenhum sobressalto. 



Mas poderia também ter recordado o Côro do Exército Vermelho, essa venerável instituição fundada, em 1929, nos primórdios da União Soviética, e ainda hoje em actividade que, na condição de embaixadora de charme, está para a imperial Mãe-Rússia como o Mormon Tabernacle Choir está para a agremiação da divindade que habita o planeta Kolob. Dividido em dois colectivos, o veterano Alexandrov Ensemble (criação de Alexander Vasilyevich Alexandrov, Artista do Povo da URSS, Prémio Estaline, autor do Hino da União Soviética e do Exército Soviético) e o MVD Ensemble, dez anos mais jovem e actual organismo oficial do Ministério do Interior da Federação Russa, tanto um como o outro demonstrarão, certamente, muito pouco apreço pela estética-punk das Pussy Riot, até porque continuam a seguir fielmente a doutrina que, em 1946, Andrei Zhdanov, comissário para a política cultural soviética, estabeleceu: combatendo “a música falsa, vulgar e com frequência, simplesmente patológica” de Shostakovich ou Prokofiev, contra o excesso “do som dos pratos e tambores”, exigia “uma música natural e formosamente humana” (opinião, aliás, próxima da de Joseph Ratzinger, que, em 2001 – na qualidade de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, sucessora da Sacra Congregação do Santo Ofício –, acusava o rock, essa “expressão de paixões elementares”, de “perturbar os espíritos pelo ritmo, o barulho e os efeitos luminosos”). Formosamente viril e naturalissimamente harmónica, entre "Kalinkas", "Barqueiros do Volga" e (diria Zhdanov, não Putin) o indesculpável desvio de direita do "Ave Maria", de Bach, podem comprová-lo escutando o MVD no recente duplo The Soul of Russia:The Ultimate Collection.

1 comment:

Táxi Pluvioso said...

É um fracote, se fosse o duro Bruno Maçães não pediria desculpas a ninguém.