08 January 2014

AMARGO DE BOCA 


Picando o ponto no clássico inevitável dos balanços finais de ano: mas onde tinha eu a cabeça quando, naquele dia, em vez de escrever sobre o disco/livro/filme “x”, optei por me ocupar do “y”, acabando por deixar o “x” indesculpavelmente de fora? Na maioria dos casos, a sensação de missão incompletamente cumprida deixa-se atenuar por uma variante mais intelectualmente respeitável do lúbrico “so many girls, so little time” mas, noutros, o amargo de boca custa a passar. Se, em 2013, não ter feito uma única referência – mesmo que só de passagem – à reedição do óptimo mas eternamente mal amado Muswell Hillbillies, dos Kinks (1971), ainda se justificaria com a desculpa velhaca de que uma reedição não tem o mesmo peso de uma publicação original, ter ficado em branco relativamente a Aheym, de Bryce Dessner, quase obriga a entrar em modo-Opus Dei de cilício e vergastada. 



Figura destacada da primeira geração pop/rock academicamente diferenciada mas, ao mesmo tempo, imunizada contra a tentação de, a despropósito, exibir a erudição, o guitarrista dos National, também compositor residente do Muziekgebouw, de Eindhoven, convidado da American Composers Orchestra e frequentador natural do círculo onde se movem Steve Reich, Philip Glass, Nico Muhly ou David Lang, é o género de pós-mimimalista que, tendo digerido sem sobressaltos a história da música do século XX, catabolizou os excessos dogmáticos do dodecafonismo e ensaiou uma síntese de vocabulários, do Renascimento à actualidade. Apresentado por Reich ao respeitabilíssimo mas sempre aventureiro Kronos Quartet, foi para ele que escreveu as quatro peças que integram Aheym: durante cerca de 45 minutos de vertiginoso virtuosismo rítmico e contrapontístico, nos quais, segundo Bryce, “cada tema responde ao que o antecede”, dispara rajadas de riffs reconfigurados para ensemble acústico, desenha intrincados labirintos eriçados de "pizzicati" e intensos polígonos sonoros assimétricos, em jogos de luz e sombra, silêncio e mapas astrais de harmónicos, viaja entre a polifonia renascentista – Thomas Tallis, Palestrina, Gesualdo – e um Arvo Pärt mais terreno, e, recorrendo ao Brooklyn Youth Chorus, em "Tour Eiffel", sobre um poema do chileno Vicente Huidobro, entrega-se a uma sinuosa ascensão vocal-orquestral, que poderia servir como ilustração ao aforismo “less is more”. E, de certa forma, ao seu inverso. 

2 comments:

Anonymous said...

Disco incrível. Fico com a sensação de que o John Cale é o percursor de toda esta gente que não se cegou nos conservatórios. Mas porque é que só 40/50 anos depois despontam em massa? (parece-me que está a acontecer o mesmo fenómeno com a malta das escolas de Jazz...). Passei a gostar de tecnicistas!

João Lisboa said...

"Fico com a sensação de que o John Cale é o percursor de toda esta gente que não se cegou nos conservatórios"

Nada mal observado.