26 March 2014

ISTO NÃO É A TORRE DE BABEL 


René Magritte poderá ter-se transformado num dos mais reconhecíveis ícones da cultura pop – directa ou obliquamente citadas, várias obras suas figuram em diversas capas de álbuns e, na "remake" de The Thomas Crown Affair, de 1999, o homem do chapéu de coco de Le Fils de l'Homme, infinitamente multiplicado, ao som do "Sinnerman", de Nina Simone, contribui decisivamente para o clímax do filme – mas a sua única verdadeira contribuição para a música popular foi ter inspirado a óptima "René And Georgette Magritte With Their Dog After The War”, de Paul Simon. Não será, por isso, abusar muito dele se nos socorrermos da sua Trahison des Images (o célebre quadro com a imagem de um cachimbo sob a qual se lê “ceci n’est pas une pipe”/isto não é um cachimbo) para falarmos das Brazilian Girls. Tal como aquilo não é, de facto, um cachimbo mas apenas a representação de um cachimbo, no grupo de Sabina Sciubba surgido há dez anos em Nova Iorque, ela era a única "girl", nenhum dos elementos era brasileiro e, se na exuberante música da banda havia partículas tropicais, eram apenas um entre mil condimentos sonoros.



Pode afirmar-se, agora, algo também aparentemente paradoxal sobre a primeira gravação a solo, “Toujours”, de Sabina: não se parece com nada que conheçamos mas, logo na primeira faixa, "Cinema", dir-se-ia que escutávamos Nico, numa versão parisiense dos Velvet Underground, reinventando "Sunday Morning" como pretexto para um comentário ao declínio do cinema (“now you are an old whore who has lost all her charms (...) who are you today, propaganda or art?"). Parisiense, aliás, é para despistar: Sabina é ítalo-alemã com trajectória entre Roma, Munique, Nice e Nova Iorque, e o álbum, literalmente "found in translation", é intensamente poliglota, tanto nos textos (francês, inglês, alemão, italiano) como nos idiomas musicais (chapadões punk, mariachi solar, borrões de jazz, "chanson" abadalhocada de cabaret, stereolabismos avulsos, à vez ou tudo ao mesmo tempo), mas erigindo uma torre de Babel prodigiosamente compreensível e acolhedora. Uma esclarecedora síntese instantânea pode descobrir-se no videoclip de "Toujours": variação rudimentarmente animada em torno do mito de Lady Godiva – com jumento no lugar do cavalo –, Sabina, de ukulele a tiracolo, viaja pelo mundo, os supermercados, o sistema circulatório e a história da arte. Como uma paródia audiovisual sobre o “Lost Jokey” de Magritte. 

2 comments:

al said...

voltastes eduardo prado coelho

João Lisboa said...

Achastes que sim?... só reparei no asno, no galaró e um ou outro elefante. Havia também coelhos? Viste-se-os?