08 April 2014

Depende de nós mais do que irmos indo, sempre acima das nossas possibilidades para o tecto ficar mais alto em vez de mais baixo


"(...) Estou a voltar a Portugal 40 anos depois do 25 de Abril, do fim da guerra infame, do ridículo império. Já é mau um governo achar que o país é seu, quanto mais que os países dos outros são seus. Todos os impérios são ridículos na medida em que a ilusão de dominar outro é sempre ridícula, antes de se tornar progressivamente criminosa. (...) E volto para morar no Alentejo, com a alegria de daqui a nada serem os 40 anos da mais bela revolução do meu século XX, e do Alentejo ter sido uma espécie de terra em transe dessa revolução, impossível como todas.

Este prémio é tradicionalmente entregue pelo Presidente da República, cargo agora ocupado por um político, Cavaco Silva, que há 30 anos representa tudo o que associo mais ao salazarismo do que ao 25 de Abril, a começar por essa vil tristeza dos obedientes que dentro de si recalcam um império perdido.

 E fogem ao cara-cara, mantêm-se pela calada. Nada estranho, pois, que este presidente se faça representar na entrega de um prémio literário. Este mundo não é do seu reino. Estamos no mesmo país, mas o meu país não é o seu país. No país que tenho na cabeça não se anda com a cabeça entre as orelhas, 'e cá vamos indo, se deus quiser'. Não sou crente, portanto acho que depende de nós mais do que irmos indo, sempre acima das nossas possibilidades para o tecto ficar mais alto em vez de mais baixo. Para claustrofobia já nos basta estarmos vivos, sermos seres para a morte, que somos, que somos.

Partimos então do zero, sabendo que chegaremos a zero, e pelo meio tudo é ganho porque só a perda é certa.

O meu país não é do orgulhosamente só. Não sei o que seja amar a pátria. Sei que amar Portugal é voltar do mundo e descer ao Alentejo, com o prazer de poder estar ali porque se quer. Amar Portugal é estar em Portugal porque se quer. Poder estar em Portugal apesar de o governo nos mandar embora. Contrariar quem nos manda embora como se fosse senhor da casa.

Eu gostava de dizer ao actual Presidente da República, aqui representado hoje, que este país não é seu, nem do governo do seu partido. É do arquitecto Álvaro Siza, do cientista Sobrinho Simões, do ensaísta Eugénio Lisboa, de todas as vozes que me foram chegando, ao longo destes anos no Brasil, dando conta do pesadelo que o governo de Portugal se tornou: Siza dizendo que há a sensação de viver de novo em ditadura, Sobrinho Simões dizendo que este governo rebentou com tudo o que fora construído na investigação, Eugénio Lisboa, aos 82 anos, falando da 'total anestesia das antenas sociais ou simplesmente humanas, que caracterizam aqueles grandes políticos e estadistas que a História não confina a míseras notas de pé de página'. (...)

Os actuais governantes podem achar que o trabalho deles não é ouvir isto, mas o trabalho deles não é outro se não ouvir isto. Foi para ouvir isto, o que as pessoas têm a dizer, que foram eleitos, embora não por mim. Cargo público não é prémio, é compromisso.

 Portugal talvez não viva 100 anos, talvez o planeta não viva 100 anos, tudo corre para acabar, sabemos. Mas enquanto isso estamos vivos, não somos sobreviventes. (...)"

3 comments:

alexandra g. said...

m-a-r-a-v-i-l-h-o-s-a

(de onde se conclui, uma vez mais, que a melhor política que se faz - não será característica exclusiva do rectângulo, não é - não tem origem nos partidos, mas nas pessoas inteiras, vivas, deixando viver)

João Lisboa said...

Perigosamente verdade.

Anonymous said...

Temos os políticos que merecemos. Afinal, vivemos numa democracia, certo?