10 December 2014

AMÆLIA


Nora Guthrie, filha de Woody Guthrie, confrontada com os inúmeros textos que o pai, morto em 1967, deixara por musicar, entregou-os a Billy Bragg e aos Wilco que se aplicaram nessa missão nos três estimáveis volumes de Mermaid Avenue (1998, 2000 e 2012). Em 2011, coube a Bob Dylan – e, depois, também, entre outros, a Jack White, Lucinda Williams, Levon Helm e Merle Haggard – ocupar-se, com mérito q.b., dos Lost Notebooks of Hank Williams, uma colecção de letras inacabadas, descobertas no interior do Cadillac em que Williams morreria, no dia de ano novo de 1953. Já em 2014, seria a vez de Dylan, por via de T Bone Burnett, desafiar Elvis Costello, Marcus Mumford e restantes New Basement Tapes a tornarem musicalmente viáveis uns rascunhos incipientes, de 1967, de que ele nunca mais se lembrara. Lost On The River foi um bom esforço mas apenas isso. Pelo que, nessa particular modalidade de radiologia musical que consiste em enxergar as melodias, harmonias e ritmos que se escondem no interior de textos virgens de confrade do mesmo ofício, até agora, ninguém se terá saído com maior sucesso do que Amélia Muge no novíssimo Amélia Com Versos de Amália.



A pedra da Rosetta que permitiu decifrar o código da matéria-prima potencial para a escrita de canções foram as linhas desencantadas em ‘Carta a Amélia Rey Colaço’ (“Versos”, de Amália Rodrigues, publicado pela Cotovia, em 1997): “Os destinos são fatais, foi só por duas vogais, foi o e em vez do a (...) Amélia queria ter sido, só o não fui por um triz”. E assim, superiormente acolitadas por José Mário Branco, Michales Loukovikas e António José Martins, em viagem entre Portugal e Grécia, no espaço de dezasseis encontros entre palavras e música, Amélia e Amália se converteram em Amælia. Personagem que, não sendo definitivamente fadista, não rejeita que se lhe colem à pele farrapos dessa e de outras tradições – das variadas ruralidades lusas aos makam orientais ou às sombras chinesas do tango – e usa-as como trampolim para a entrada no admirável mundo amæliano onde tudo isso funciona como víscera, músculo, sistemas circulatório e nervoso de um impuríssimo organismo poliglota, tão à vontade no idioma popular como na sofisticação erudita ou transviadamente jazzística contemporâneas.

No comments: