10 February 2015

A ESCASSA LUZ DA NOITE 


Há 50 anos, entre Abril e Julho de 1965, Bob Dylan publicou os seus dois primeiros álbuns eléctricos (Bringing It All Back Home e Highway 61 Revisited), dos quais extraiu os singles-separadores-de-águas "Subterranean Homesick Blues" e "Like A Rolling Stone", e, no Newport Folk Festival, acompanhado pela Paul Butterfield Blues Band, desencadeou a ira dos talibans-folk – segundo os relatos coevos, “metade do público ficou electrizada e a outra metade, electrocutada”. Cinco anos depois, com Self Portrait, procurou, deliberadamente, alienar o que lhe restava da legião de fiéis que continuava a ver nele o messias da contracultura e, mesmo após a suposta “reabilitação” proporcionada por Blood On The Tracks (1975) e Desire (1976), não esperou sequer meia década para, na qualidade de "born-again christian", gravar o tríptico militantemente evangelizador Slow Train Coming (1979), Saved (1980) e Shot Of Love (1981). Já não deverão existir, então, grandes motivos de escândalo para o facto de, comemorando o cinquentenário da primeira grande heresia, Dylan não ter hesitado em decididir-se por Shadows In The Night, um álbum de releitura de "standards" popularizados por Frank Sinatra. 



Uma pitada de contexto ajuda a ajustar a perspectiva: no mês e no ano (Maio de 1941) em que Bob Dylan nasceu, Sinatra – que, em Dezembro de 2015 completaria 100 anos – era eleito pela “Billboard” e pela “Downbeat” melhor vocalista masculino; "The Night We Called It A Day", a canção mais antiga de Shadows In The Night, foi gravada por Frank Sinatra quando Dylan tinha um ano, e a mais recente, "Stay With Me”, é contemporânea (1963) de The Freewheelin’ Bob Dylan; meses antes da morte de Sinatra (Maio de 1998), Bob editara Time Out Of Mind, marca de partida para o ressurgimento criativo da sua última etapa que prosseguiu até hoje. O ítalo-americano de Hoboken, New Jersey, poderia não ter a melhor opinião sobre o rock’n’roll (em 1957, qualificou-o como “a forma de expressão mais brutal, horrível, degenerada e perversa”) mas isso não impediu que, nas Chronicles Vol. 1, Dylan confessasse que “quando Frank cantava a fenomenal ‘Ebb Tide’, eu ouvia tudo na sua voz – a morte, Deus, o universo, tudo” e que, agora, acrescente “quando abordamos estas canções, Sinatra é a montanha que temos de escalar mesmo que nos fiquemos apenas pelo meio do caminho”. E entrega-se à tarefa com uma claríssima intenção (no original, em inglês, porque só assim faz sentido): “These songs have been covered enough. Buried, as a matter of fact. What me and my band are basically doing is uncovering them. Lifting them out of the grave and bringing them into the light of day”.



Mais exactamente, à escassa luz da noite. Porque esta recolha que evita cuidadosamente os lugares mais comuns do reportório do Ol’ Blue Eyes, acima de tudo, não é o confronto entre A Voz e aquela emissão vocal que Bowie, em tempos, elogiosamente descreveu como “uma mistura de cola e areia”. É, sim, a magnífica apropriação de um acervo de melodias e textos transpostos para um idioma country das turvas "wee small hours" – não há-de ser um acaso que, na sua Theme Time Radio Hour, Tom Waits fosse o autor mais frequente –, com os glissandi da "steel guitar" de Donny Herron como secção de cordas alternativa e o mistério adicional de nos convencer que palavras como as de Oscar Hammerstein (“Fools give you reasons, wise men never try”) poderiam, afinal, ser de Bob Dylan. 

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