18 February 2015

FOLHAS DE LÓTUS 


Foi originalmente publicado em 2001, reeditado o ano passado, mas para discos como Any Other City, dos Life Without Buildings, pensar em actualidade é nem sequer enxergar o alvo para que se aponta. Membros de pleno direito do mui selecto clube das bandas que deram ao mundo um único álbum – Young Marble Giants, United States Of America, Sex Pistols, The Germs, The Del-Byzanteens – e, por ele, foram, para sempre, recordados (ainda que, em alguns casos, só por glorificação póstuma), Any Other City, peça singular sem descendência estética que tanto poderia ter sido gravada em 1980 como depois de amanhã, é, simultaneamente, coisa da máxima simplicidade e – beleza maior – objecto que resiste obstinadamente a sucessivas tentativas de decifração. Will Bradley, Chris Evans, Robert Dallas Grey e Sue Tompkins seriam, hipoteticamente apenas mais uma proverbial "art school band" (da Glasgow School Of Art), se, entre 1999 e 2002, apropriando-se de um passaporte estético que fora, antes, emitido pelos Television, Slits, Go Betweens, MBV, ou Pavement, não tivessem ignorado tudo o que, nele, era acessório para o converter em exclusiva moldura para a voz de Tompkins. 



Gertrude Stein falava da sua escrita como "the excitingness of pure being", um “excess of consciousness”, e havia quem recomendasse que se escutasse as suas palavras, não procurando compreendê-las mas submetendo-nos ao seu encantamento. É obrigatório proceder do mesmo modo com Sue Tompkins: a única forma de aceder à gramática secreta do seu "spoken word/sprechgesang" é não oferecer resistência e aceitar as consequências de ser atropelado por aquela espécie de Tristram Shandy freneticamente gaguejado, decomposto em fonemas, triturado e re-re-re-repetido em "rush" de dopamina, mergulhar no eloquentíssimo fogo-de-artifício da ecolália, abdicar da distinção entre semântica, fonética, "nonsense", colagem extática e abstracção, e considerar perfeitamente natural que tudo se conclua com uma sequência de acordes aparentada à de "Sweet Jane" sobre a qual se tatua uma gincana verbal que não começa nem acaba em “eyes like lotus leaves, no not even like lotus leaves, eyes like lotus leaves, no not even like lotus leaves, the many ways, the many ways, I see the many ways, see things sure, eyes like lotus leaves”.

2 comments:

aaa said...

Fantastico texto,grande disco.ha ja 10 anos que o tenho como perola dos inumeros albums "de culto" que vamos conquistando.

Ja agora,porquê o destaque nesta altura?(nao me leve a mal,ainda proporcionou a revisitaçao anual do disco...)

Destes nem o YouTube tem performances registadas,isto é mesmo anonimato.

João Lisboa said...

"Ja agora,porquê o destaque nesta altura?"

Porque tropecei nele nos Buried Treasures da última "Mojo". Foi reeditado para o Record Store Day do ano passado.