13 August 2015

A PRECÁRIA ORDEM DO MUNDO
(sequência daqui)


Momus, divindade da mitologia grega que personifica o escárnio, filho de Nyx – a noite – e irmão gémeo de Oizus, deusa da angústia e do desespero, apeteceu-lhe difamar Terpsicore, a musa da dança, e chamou-lhe Turpsycore, brincando, perversamente, com “turpitude”/depravação. Exactamente o género de divertimento a que Nicholas Currie ("nom de plume", Momus) poderia entregar-se no momento de dar nome a um álbum. Na verdade, fê-lo mesmo. E não poupou na ambição: três CD – Turpsy, Dybbuk (na tradição judaica, uma alma penada que vagueia em demanda de um corpo vivo de que se apossará, tal como ilustrado pelos Coen no prólogo de A Serious Man) e Harvard –, o primeiro, incluindo temas originais, o segundo, com versões de canções de David Bowie, e o terceiro, dedicado a releituras de Howard Devoto, o génio mui insuficientemente recordado dos Buzzcocks e, sobretudo, Magazine.



Nada de más interpretações apressadas, porém: do tipo que, em 2012, muito reynoldsianamente declarava “Estou convencido que o grande problema da pop é ter-se deixado paralisar pelo respeito para com o passado. Estamos esmagados pelo peso dos arquivos e isso torna difícil a criação de formas genuinamente novas” nunca iríamos esperar uma manobra de ressuscitação nostálgica. E não é, de facto, disso que se trata: tanto nos dezassete temas de Turpsy (e respectivos e indispensáveis videoclips, disponíveis no Youtube) como nos outros dois, o que se descobre, de espanto em assombro, é um desfile de instantâneos de um cabaret encenado por Kafka (em “O Castelo”, uma das personagens dá pelo nome de Momus), Cronenberg e Roy Andersson sobre uma falha na ordem precária do mundo, uma demonstração prática do confessado programa de “agressão contra a normalidade” exposta em ameaçadoras "limericks" (“rancid jism in a furnished room, boking in a bucket of tar, the living or the dead, sick or on the nod, don’t really care who they are”), polcas sibilantemente obscenas, recitações morbidamente ballardianas, blues electronicamente desfigurados e uma sucessão de vénias subliminares a Cage, Lou Reed, Burroughs, Paul McCarthy, ou Jobriath, de tal modo embutidas nas vísceras das canções que, quando se chega a Dybbuk e Harvard, não é já mais possível distinguir o que pertence a quem, onde começa Currie e acabam Bowie e Devoto.

3 comments:

alexandra g. said...

I'll be damned, but this looks like tomorrow :)

João Lisboa said...

Yup.

:-)

alexandra g. said...

És um gajo mesmo giro!
Toma um beijo seguido de abraço :)