20 August 2015

MR. JONES

Conta Alberto Manguel, em Uma História da Leitura (1996), que "o universo, na tradição judaico-cristã, é concebido como um livro escrito, feito de números e letras; a chave para o compreender reside na nossa capacidade para ler estes números e letras adequadamente e conseguir o domínio das suas combinações, aprendendo, assim, a dar forma a alguma parte desse texto colossal, numa imitação do criador”. E, optando por uma perspectiva utilitária mas, certamente, não de menor importância, refere uma lenda do século IV segundo a qual os eruditos talmúdicos Hanani e Hoshaiah estudavam o Sefer Yetzirah (ou “Livro da Criação”, o mais antigo texto clássico do esoterismo judaico, atribuído a Abraão) uma vez por semana e, através da combinação acertada das letras, criavam um vitelo de três anos que comiam ao jantar. Exactamente há 50 anos, o judeu-norte-americano, Robert Allen Zimmerman, aliás, Bob Dylan, numa canção – "Ballad Of A Thin Man", de Highway 61 Revisited – gravada a 2 de Agosto de 1965 e interpretada ao vivo, pela primeira vez, 26 dias depois, em Forest Hills, Nova Iorque, escarnecia de quem, perante um mundo que mudava rapidamente de pele, era totalmente incapaz de o ler: “Because something is happening here, but you don’t know what it is, do you, Mr. Jones?”

Stephen Malkmus & The Million Dollar Bashers - Banda sonora de I'm Not There (real. Todd Haynes, 2007)
 
Até hoje, multiplicaram-se as interpretações acerca de quem, na realidade, seria Mr. Jones (a tendência para o "gossip" obcecado com a árvore em detrimento da floresta é antiga) mas seria Momus que, em "Who Is Mr Jones?" (The Little Red Songbook, 1998), daria a resposta definitiva: “Bob Dylan at the height of his fame got asked the same question again and again, in a forest of microphones, 'Tell us, Bob, who really, who really is Mr. Jones?' (…) He's a real person, you know him, you don't have to be so imaginative, the answer is blindingly obvious: Mr. Jones is a man who doesn't know who Mr. Jones is”. A verdade é que o mundo se tornou vertiginosamente indecifrável e somos cada vez mais os que, todos os dias, ao despertar de sonhos intranquilos, nos descobrimos, tomados de pânico samsiano, convertidos não em barata mas em réplica de Mr. Jones - como, por outras palavras, diria o também visceralmente judeu Woody Allen: “Deus morreu, Marx morreu e eu próprio não me sinto lá muito bem”. O testemunho mais recente, num dos últimos números do “Jornal de Letras”, é da nada judaica e bem mais helénica Hélia Correia: “Estou sem coordenadas e oscilo (...). Não sei o que é pensar. Como se pensa?”

1 comment:

t. said...

Que categoria de texto!