01 October 2015

ESCUTAR COMO SE VÊ UM FILME


“Sou uma diletante, escolho e retiro elementos de todas as áreas musicais, não sou uma académica concentrada e circunspecta”, é como Julia Holter se auto-define. E dificilmente o poderia fazer melhor: personagem tão apta a surgir na capa da “Wire” ao lado de praticantes do mais esotérico experimentalismo como de publicar o recente Have You In My Wilderness – recolha de canções sumptuosamente orquestradas –, ao quarto volume da sua discografia, começa a ser obrigatório prestar-lhe a devida atenção.

Nos seus álbuns anteriores, recorria sistematicamente a referências literárias: Tragedy (2011) alimentava-se do “Hipólito”, de Eurípides, bem como de outras tragédias gregas; em Ekstasis (2012), citava Frank O’Hara e Virgínia Woolf; Loud City Song (2013) inspirava-se na “Gigi”, de Colette. Agora, em Have You In My Wilderness, parece ter acedido a uma outra fase em que muito mais claramente se concentra no formato clássico da canção como entidade autónoma.
De certo modo, sim, mas não completamente. Neste álbum, três ou quatro canções também se desenvolveram a partir de personagens de livros que ia lendo. Escrevi "How Long" quando, durante uma visita a Berlim, andava a ler as “Berlin Stories”, do Chistopher Isherwood, e "Lucette Stranded On The Island" surgiu a partir de “Chance Acquaintances”, outra vez de Colette. Mas trata-se, no entanto, apenas de canções independentes e não interrelacionadas por um tema único. Concebi este álbum como uma colecção de canções e baladas prestando muito mais atenção à globalidade do som. Foi gravado, durante um ano, em diversos momentos e contextos. Há uma certa unidade do ponto de vista sonoro mas cada canção tem uma personalidade própria.

Li que a sua intenção era que todos os álbuns pudessem ser apreciados do mesmo modo que assistimos a um filme... 
Sim, o meu desejo é que possam ser escutados como se vê um filme, serem uma espécie de audiofilme. No entanto, não diria que Have You In My Wilderness seja esse tipo de disco. O que mais se aproximou disso foi Tragedy

Este seria, então, talvez, mais como uma colecção de videoclips? 
Exactamente. 

É curioso porque, em vários dos seus videoclips, as imagens parecem conter uma narrativa paralela à da canção...
Nunca sou eu quem realiza os vídeos e dou toda a liberdade aos realizadores mas, na verdade, embora exista, necessariamente, uma relação entre música e imagens, cada uma conta a sua história.



Tal como St. Vincent, Shara Worden (dos My Brightest Diamond) ou os gémeos Dessner (dos National), entre vários outros, a Julia faz parte de uma geração de músicos com formação académica clássica que acabaram por, de certa forma, renegá-la e optar por uma linguagem mais “profana”...
O universo académico tende a ser demasiado limitador o que conduz algumas pessoas a procurarem desbravar o seu caminho fora do espaço dos departamentos de música universitários, dos conservatórios e das academias. Trabalhar nessa atmosfera clássica gera muitas vezes a ideia de que tudo poderá vir a tornar-se demasiado complexo e, claro, reage-se contra isso. 

Pode, então dizer-se que são os smart ones that got away?
Não quis dizer exactamente isso. Para alguns, esse mundo funciona muito bem e, no interior dele, são capazes de produzir óptimas obras. Mas os outros que não se adaptam a ele só têm como solução sair e descobrir a via em que se sentem mais à vontade. Não nego, no entanto, que tudo o que aprendi sobre teoria musical e musicologia foi muito útil e interessante.

Achei interessante que tenha confessado ao “Guardian” que se vê mais como "storyteller" do que como cantora, porque Laurie Anderson – com quem, por vezes, é comparada, bem como com Meredith Monk, Kate Bush, ou, diria eu, Judee Sill – afirmava, justamente o mesmo... 
Tenho de reconhecer que sou cantora... esses nomes que referiu começaram a compor e a criar muito antes de mim, seguramente foram uma influência importante para imensos músicos mas não ousaria comparar-me com elas porque cada uma foi absolutamente singular. Tenho consciência de que poderá haver pontos de contacto com o que faço, gosto muito delas, particularmente, de Kate Bush, mas também de Laurie Anderson. 




Não sei se já reparou mas, quando se escreve “Holter” no Google, a primeira referência que surge é o Monitor de Holter, um aparelho de electrocardiograma portátil que regista o ritmo cardíaco ao longo de 24 horas ou mais. Fiquei com a ideia que poderia ser uma metáfora útil para a sua música que, apesar de lidar com emoções, é muito precisa, cerebral, muito racionalmente escrita... 
Não sei... mas essa ideia é muito interessante. Não acho que tenha uma atitude robótica e que as minhas canções sejam desprovidas de emoção mas também não seria capaz de descartar esse seu ponto de vista. 

Já deu concertos tanto na Europa como nos EUA. Sente alguma diferença na reacção de americanos e europeus à sua música? Pergunto isto porque sempre me pareceu que os seus discos têm uma sensibilidade particularmente europeia... 
Não tenho a certeza. Nunca reparei que houvesse reacções distintas, Sou americana, sinto-me muito americana, mas a verdade é que já não é a primeira vez que me dizem isso. Tal como o contrário. A verdade é que, hoje, essas distinções são capazes de já não fazer grande sentido, vivemos numa sociedade definitivamente global.

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