17 January 2016

O ROCK’N’ROLL NUNCA MENTE 


Quando, em 1974, se planeava a publicação de 1969: Velvet Underground Live, o crítico de música Paul Nelson – então, a trabalhar para a Mercury Records – pediu ao ainda quase desconhecido (mas já aclamado como um dos “novos Dylan”) Elliott Murphy que escrevesse as "liner notes" para o álbum. Este não desperdiçou a oportunidade e entregou-lhe um texto que abria de modo pouco convencional: “Passaram já cem anos e todos os que estão a ler isto estão mortos. Eu estou morto. Tu estás morto. E um miúdo que frequenta o secundário e estuda música estará, talvez, a escutar os Velvet Underground porque tem de fazer um trabalho sobre rock’n’roll clássico. Pergunto-me o que estará ele a pensar? Gostava que se inventasse uma máquina que pudesse contar o maior segredo de cada pessoa... o teu, o meu e o de Lou Reed. A diferença entre o cinema e o rock’n’roll é que o rock’n’roll nunca mente. E nunca promete um final feliz”. Em Março deste ano, em entrevista à Popmatters, por ocasião da reedição da sua estreia, Aquashow (1973), Murphy recorda: “O Lou Reed telefonou à minha mãe para me agradecer e ela disse-lhe que eu iria ficar muito satisfeito por saber que ele tinha telefonado. O Lou perguntou porquê e a minha mãe respondeu que eu era um grande admirador seu. ‘Mas quem não é?...’ foi a resposta dele”.



É esse duplo LP, 1969: Velvet Underground Live, também já incluído na 45th Anniversary Super Deluxe Edition do terceiro álbum dos Velvets (2014) e em Bootleg Series Volume 1: The Quine Tapes (2001), que reemerge, agora, ampliado para versão "box set" de quatro CD (The Complete Matrix Tapes), integrando, aquilo que, supostamente, será, enfim, a totalidade das faixas registadas ao vivo no Matrix, de S. Francisco, clube fundado em 1965 por Marty Balin, dos Jefferson Airplane. As relações da banda com a cidade da Costa Oeste, então, já a viver a dura ressaca do Summer of Love de 67, nunca haviam sido as melhores (“Sempre tivemos as maiores objecções em relação a toda a cena de S. Francisco. É uma completa mentira, uma aborrecida falta de talento geral. Não sabem tocar e são absolutamente incapazes de compor. Passo a vida a dizer isto e ninguém liga. Costumávamos calar-nos mas deixei de me ralar por dizer coisas negativas, alguém tem de falar”, desabafava, na altura, Lou Reed) mas, em Novembro e Dezembro de 1969, expulso John Cale (substituído por Doug Yule), os VU que tinham acabado de editar o terceiro álbum já não eram exactamente a mesma banda de White Light/White Heat.



A atmosfera é surpreendentemente descontraída (“Boa noite, somos o vosso Velvet Underground local, não queremos que ninguém desfrute destas canções de forma frívola, isso iria contra a política nacional”), "I’m Waiting For The Man" é apresentada como “uma canção escrita sob a influência dos sonhos, acerca da viagem de um homem de 'uptown' para 'downtown'” e "Black Angel’s Death Song" na qualidade de expediente “que os clubes usavam quando desejavam esvaziar a sala para fecharem mais cedo”, mas, ao longo dos quatro discos – 4 versões de "Heroin" e "Some Kinda Love", 3 de "I’m Waiting For The Man", "We’re Gonna Have A Real Good Time Together" e "There She Goes Again", 2 de diversas outras –, tanto é notória a ausência de Cale (em particular, nos 37 minutos de "Sister Ray", esvaída de qualquer tensão e convertida em pretexto para quase convencional "jam"), como, embora sem fatal perda de energia, permite adivinhar o momento de transição para o seguinte – e último álbum da banda com Lou Reed –, Loaded.


No número de 24 de Dezembro de 1970 da “Rolling Stone”, o crítico de turno, Lenny Kaye, ainda que colocando algumas reticências, não lhe poupava palavras nem elogios (“facilmente, um dos melhores álbuns deste ou de qualquer ano”) mas, sobretudo, defendia o ponto de vista de que “a coisa mais surpreendente acerca da mudança deste grupo é que não tenha havido nenhuma verdadeira mudança. Loaded é apenas um refinamento da música dos Velvet Underground que conhecemos dos três álbuns anteriores”. Não tinha, de facto, razão. Se a gravação que, para superior satisfação editorial, deveria estar “loaded with hits”, continha futuros clássicos como "Sweet Jane" ou "Rock’n’Roll", a puríssima verdade é que Doug Yule nunca seria substituto sequer à altura dos tornozelos de John Cale. No álbum anterior isso não se teria tornado ainda completamente evidente mas, desta vez, a conversão praticamente integral dos VU ao modelo convencional de banda rock, amputada de toda a acidez e perversa bizarria que, em The Velvet Underground And Nico e White Light/White Heat, ostensivamente exibia na qualidade de erva daninha germinada em terreno tóxico warholiano, entrava pelos ouvidos dentro. Na luxuosa reedição de 5 CD e um DVD áudio de que é agora objecto (Loaded: Re-Loaded 45th Anniversary Edition), em formato de "scrapbook", por entre inúmera memorabilia iconográfica, podemos reler o texto de Kaye e o outro que ele, nesta oportunidade, lhe acrescenta como contextualização e evocação de Loaded (nas versões "remastered", mono original, "surround sound remix", estéreo "downmix" e estéreo original), de Live At Max’s Kansas City Remastered (gravado em cassete por Brigid Polk pouco antes da publicação de Loaded), e do Live At Second Fret, Philadelphia, 1970. A avaliação actual reafirma a de há 45 anos. Mas o disco – mesmo audiofilamente "pimped" – não deixou de ser o que era.

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