19 October 2016

APROPRIAÇÃO CULTURAL 

Debussy - "Pagodes" (Martha Argerich)

Nas páginas do “Guardian”, nas últimas semanas, tem sido tema constante. Tudo começou, pela notícia da intervenção da escritora Lionel Shriver, numa conferência em Brisbane, na qual contava a história de dois estudantes do Bowdoin College, no Maine, EUA, que, no início deste ano, organizaram uma festa temática de aniversário para um amigo. Sendo a tequila o tema, distribuiram "sombreros" pelos convidados. Mal as fotos da festa surgiram nas redes sociais, desencadeou-se uma tempestade na universidade: acusados de “estereotipificação étnica”, os “culpados” foram expulsos das instalações que ocupavam e a associação de estudantes exigiu que fossem tomadas medidas que impedissem novos e pérfidos actos de “apropriação cultural”. Pouco depois, foi a notícia de uma empresa canadiana produtora de um gin aromatizado com plantas silvestres do norte do país, obrigada a pedir desculpa ao povo Inuit (anteriormente designado como “esquimó”, o que viria a ser considerado insultuoso) por causa de um video publicitário de animação onde apareciam bonecos Inuit, canoas, cantos tradicionais, igloos e ursos polares. O pecado? “Apropriação cultural”. Logo a seguir, chegou a vez da Disney, forçada a acto de contrição por, no filme (ainda por estrear) Moana, se ter atrevido a representar personagens, trajes e adereços nativos da Polinésia.

Django Reinhardt - "Blues"

Acerca de tão iníquas profanações identitárias – proibido seria ainda que um escritor abordasse temas e contextos exteriores ao seu género, etnia, orientação sexual –, Shriver afirmara: “Ser membro de um grupo não é uma identidade. Ser asiático, gay, deficiente ou pobre não é uma identidade. (...) Se abraçarmos identidades de grupo estreitas, encerramo-nos nas próprias jaulas em que nos querem aprisionar”. Mas poderia também ter acrescentado que, se pretender conduzir-se a denúncia da “apropriação cultural” às últimas consequências, irá ser necessário, por exemplo, eliminar uma imensa fatia da história da música ocidental: não serão as "mourisques" e "morris dances" uma ofensa à cultura árabe? Deveria Mozart ter-se permitido o “Rondo Alla Turca” e o francês Bizet ter composto a Carmen? Debussy tinha autorização para colher inspiração nos gamelãs de Java? E Duke Ellington errou gravemente ao incorporar Debussy e Ravel que, por sua vez, bebeu do jazz, género que o cigano franco-belga, Django Reinhardt, também praticava? E as intimidades de Philip Glass com a música indiana para não falar das inomináveis promiscuidades rock, blues e country? Muitas cabeças irão ter que rolar...

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