01 November 2016

FUGA SEM FIM


      1) E ainda há quem negue que os astros exercem influência sobre a vida dos humanos... no caso de Bruce Springsteen, foi a Lua de 20 de Julho de 1969, pelas 22h56. Neil Armstrong e Buzz Aldrin estavam prestes a dar um passo gigante para a humanidade mas, no Pandemonium Club, na esquina da Sunset Avenue com a Route 35 da costa de New Jersey, os presentes dividiam-se entre concentrar-se nas imagens a preto e branco que uma pequena televisão, num canto do bar, recebia de um ponto no espaço a 384 400 quilómetros de distância e prestar atenção ao concerto dos Child (designação original dos Steel Mill, semente da futura E-Street Band). Perante a indecisão, o baterista Vini "Mad Dog" Lopez fez jus ao nome e berrou “Se não desligarem imeditamente a merda da televisão, vou aí e espeto-lhe um pontapé!”, logo a seguir, saltou para cima do proprietário do clube e, nesse momento, Bruce e a banda viram o seu primeiro contrato para uma semana inteira de concertos ser, instantaneamente, cancelado. Porém, assegura Springsteen nas duas últimas linhas do capítulo 17 da sua autobiografia, Born To Run, “não iríamos ficar muito mais tempo no circuito dos bares da costa. O mundo dos concertos estava à nossa espera”.

Steel Mill
  
     2) Um ponto de partida poderá situar-se na primeira metade da década de 60, quando, por volta dos catorze anos, Bruce Springsteen tinha um sonho recorrente no qual os Rolling Stones davam um concerto no Convention Hall de Asbury Park mas, inesperada e dramaticamente, Mick Jagger adoecia. Era impossível adiar o espectáculo e encontrar quem o substituísse tornava-se uma terrível urgência. Mas quem o poderia fazer? “De repente, surgia um jovem herói no meio do público. Tinha a voz, o look, os movimentos, não tinha acne e tocava guitarra que se fartava. O Keith sorria e, de um momento para o outro, os Stones já não estavam tão desesperados para tirar o Mick da cama. Como é que o sonho acabava? Sempre da mesma maneira... o público em êxtase”.


     3) Na verdade, em tonalidade mais intensamente bíblica, tudo começara anos antes, num outro ecrã de televisão: “No princípio, a Terra estava coberta por uma enorme escuridão. Havia o Natal e o dia de anos, mas, para lá disso, havia um vazio infinito e autoritário. (...) Depois, num momento de luz ofuscante, como se no universo tivesse nascido um bilião de novos sóis, passou a haver esperança, sexo, ritmo, emoção, possibilidades, uma nova maneira de sentir, de pensar, de olhar para o corpo, de pentear o cabelo, de usar a roupa, de andar e de viver”. Após vários parágrafos engarrafados de maiúsculas e pontos de exclamação, o segredo é revelado: a 9 de Setembro de 1956, Elvis Presley fizera a sua aparição no programa televisivo de Ed Sullivan. Exactamente o mesmo profeta que, noutro dia 9 (de Fevereiro de 1964), faria descer dos céus outras quatro divindades: “Como que por milagre, o meu cabelo encaracolado italiano ficava liso, o meu rosto ficava sem acne e o meu corpo encolhia e cabia num daqueles fatos à Nehru. Estava empoleirado nos saltos de umas botas cubanas à Beatles. Não demorei muito tempo a perceber: eu não queria propriamente conhecer os Beatles. Queria ser os Beatles”.


     4) Nas cerca de 600 páginas de Born To Run, Springsteen nunca voa tão alto como Dylan, em Chronicles Vol. 1, ou mesmo como Morrissey, nas melhores passagens da sua Autobiography. Isso não impede, contudo, estas memórias de serem um posto de observação privilegiado sobre uma biografia – e o que dela se reflecte na obra musical – tão medularmente americana quanto (quase) desconfortável por essa condição. O avô “holandês” mas, essencialmente, “o sangue irlandês e italiano”. A casa da família “literalmente, no seio da Igreja Católica”, entre o convento das freiras, a igreja de Santa Rosa de Lima e a escola. A memória das “tenebrosas assembleias da comunhão, (...) o incenso, os homens crucificados, o dogma que era uma tortura memorizar, a Via Sacra das sextas-feiras, os homens e mulheres de vestes negras até aos pés, o confessionário com a sua cortina e a janela de correr, a expressão sombria do padre”. E o pavor da escola (“Já me tinham batido com a régua nos nós dos dedos ou puxado a gravata até sufocar; já me tinham dado carolos e metido de castigo num armário ou na lata do lixo enquanto me diziam que aquele era o meu lugar. Tudo bastante normal para uma escola católica nos anos 50”) da qual, assim que pôde se libertou. Porém, “no catolicismo, havia uma poesia, um perigo e uma escuridão que reflectiam a minha imaginação e o meu eu interior (...) uma terra de uma beleza enorme e agreste, de histórias fantásticas, castigos inimagináveis e recompensas infinitas, (...) um lugar glorioso e patético”. E tudo isso a verter-se cinematograficamente sobre “Adam Raised A Cain", "Promised Land", "Jesus Was An Only Son", "Heaven’s Wall", "Devils and Dust", "This Is Your Sword" e incontáveis referências como “forty days and nights of rain washed this land, Jesus said the money changers in this temple will not stand, find your flock, get them to higher ground, the floodwaters’ rising, we’re Canaan bound” (de "Rocky Ground" em Wrecking Ball).



     5) Por vezes, pressente-se quase uma ressonância do Kerouac de On The Road (“Quando chove, a humidade do ar inunda a nossa cidade com o cheiro a café moído que vem da fábrica da Nescafé, ao fundo, para leste. Não gosto de café mas gosto daquele cheiro. (...) Há aqui um lugar – podem ouvi-lo cheirá-lo – onde as pessoas vivem, sofrem, desfrutam de pequenos prazeres, jogam basebol, morrem, fazem amor, têm filhos, embebedam-se nas noites de Primavera e fazem tudo o que podem para manter ao longe os demónios que querem destruir-nos a nós, às nossas casas, às nossas famílias, à nossa cidade (...) – a cidade de Freehold, New Jersey”); noutras, abeira-se de Mark Twain (“Tenho dez anos e conheço todas as rachas e buracos dos passeios em Randolph Street, a minha rua, onde sou ora Aníbal a vencer os Alpes, um fuzileiro num combate terrível numa montanha ou todos os cowboys possíveis e imaginários a atravessar os caminhos rochosos da Serra Nevada”); noutras ainda, em apenas duas frases, arranca uma imagem completa ao álbum de família: “A minha mãe lia romances e deliciava-se com os êxitos mais recentes da rádio. O meu pai explicava-me que as canções de amor faziam parte da conspiração do governo para levar as pessoas a casarem-se e a pagarem impostos”.


     6) Como Elvis Costello na sua autobiografia do ano passado, Unfaithful Music, Springsteen, em simultâneo com a publicação de Born To Run (não foi, decididamente, um acaso que tivesse atribuído às memórias o mesmo título do álbum que imaginou como “o último disco à face da terra, o último disco que poderíamos ouvir na vida, um ruído glorioso antes do apocalipse”), edita um "companion album", Chapter and Verse, algo como uma banda sonora da leitura, cronologicamente organizada. Começa, então, pela pré-História com os Castiles (assim baptizados a partir de uma marca de champô), Steel Mill – isto é, Springsteen gatinhando pelo chão do blues/hard rock, “música pesada proletária com guitarras estridentes” –, e da Bruce Springsteen Band ("The Ballad Of Jesse James" é uma convincente imitação de The Band) e, a partir do instante em que “havíamos subido aos céus e falado com os deuses que nos disseram que cuspíamos trovões e lançávamos raios” (por outras palavras, a entusiástica benção de John Hammond e o contrato com a Columbia), de Greetings From Asbury Park, NJ em diante, é, como se diz, História. Assente num método – “imagino uma vida, depois visto-a e vejo como me assenta” – e numa convicção: “Iria passar a minha vida na estrada, percorrendo centenas de milhares de quilómetros, e a minha história seria sempre a mesma... o homem chega à cidade, dispara, o homem vai-se embora da cidade e afasta-se por entre a escuridão; depois, 'fade to black'. Tal como eu gosto”.

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