13 February 2018

O DEDO NA FERIDA


A 10 de Janeiro passado, o “New York Magazine” publicou um artigo de Molly Fischer – “The Great Awokening: What happens to culture in an era of identity politics?” – no qual se afirmava que “o primeiro ano da presidência de Donald Trump tinha tornado as prioridades claras”: “Com uma vedeta racista de ‘reality shows’ na Sala Oval e neo-nazis reivindicando Taylor Swift como a sua princesa ariana, é, de certeza, o momento exacto para analisarmos o conteúdo do que consumimos e averiguar o que diz sobre a América em que vivemos”. Seguia-se uma extensa lista de casos na televisão, música, cinema, abrangendo os diversos debates em curso acerca de políticas de identidade, apropriação cultural e, inevitavelmente também, as infinitas sequelas do "affaire"-Weinstein, que delimitariam as hipóteses de uma nova atitude “sensível a experiências raciais, culturais, sexuais e identidades de género diferentes das nossas”. Já em 2011, aquando da publicação de whokill, Merrill Garbus (Tune-Yards) confessava, em público, as suas perplexidades face ao uso que fazia das poliritmias africanas: “Devo pedir autorização? Se tenho medo de pedir autorização, quererá isso dizer que não o deveria fazer? Até gosto que me acusem de pilhar a música africana se isso me permitir iniciar a discussão desse assunto”.



Ainda que, de facto, a história da música não seja senão um imenso processo de “apropriação cultural”, Garbus acabou por deixar-se abalar pela dúvida e, agora, I Can Feel You Creep Into My Private Life expõe abertamente essa vacilação. Antecedido por uma declaração enviada aos media culturais – “Até agora, a música nunca respondeu à desconfortável interrogação sobre o papel da arte e dos artistas na desmontagem do racismo, no combate à opressão ou na contenção das alterações climáticas. E pergunto-me se o poderá fazer sem tresandar à supremacia e privilégio brancos que se propõe investigar” –, no fundo, mantém a questão em aberto: se Merrill anuncia “I must be witness to everything” e, em “Colonizer”, coloca, impiedosamente, o dedo na ferida (“I use my white woman's voice to tell stories of travels with African men, I comb my white woman's hair with a comb made especially, generally for me, I smell the blood in my voice”), todo o exuberante suporte musical do discurso assenta num belíssimo caldo "avant-pop" feito de linhas de baixo R&B, antiguidades Motown, disco, house, funk e electro. Sem exalar nenhum odor reprovável.

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