28 November 2007

TOM WAITS: AUTOBIOGRAFIA EM PEQUENAS PRESTAÇÕES, DITOS DE ESPÍRITO E SABEDORIA (XXIV)


"O meu sogro tentou convencer-me a entrar num negócio, umas pastilhas chamadas Testamints. São pequenos losangos com uma cruz desenhada no meio. Se se andar em viagem e não se puder ir à missa, toma-se um Testamint e ele pôe-nos em contacto com o Poder Supremo. O Corpo de Cristo. Decidimos, então, levar a coisa um bocadinho mais longe. Se já há os Testamints, por que não o Chocolate Jesus? Derrete-se na boca e não nas mãos, funciona de forma imediata, tomai isto em memória de Mim. Pode haver quem pense que isto é uma blasfémia mas, a mim, parece-me mais uma manifestação de espiritualidade profunda. Isto, para não ir ao ponto de dizer que o sabor das hóstias da comunhão não chega aos calcanhares do chocolate. Estou convencido que a empresa devia entregar esse assunto nas mãos do departamento de controlo de paladares. Porque é que as hóstias têm de ser tão insonsas? Podia perfeitamente acompanhar-se o ciclo das estações: por exemplo, no outono, hóstias com sabor a maçã e canela. Muita gente que abandonou a igreja voltava de certeza.

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"Até certo ponto, todos temos alguma curiosidade acerca dos nossos vizinhos e há sempre quatro ou cinco coisas que sabemos deles. A partir dessas coisas, criamos uma ideia sobre a vida deles. O automóvel dele é um Valiant...Já reparaste? O cão tem uma pelada no lombo... A mulher parece não ter mais de dezasseis anos... Olha para a garagem: parece que houve um incêndio e nunca mais voltaram a pintá-la. Depois, à medida que os pormenores se vão acrescentando, a história vai crescendo: vi-o na noite passada com umas calças verde-limão... de onde é que ele é? De St. Louis? Foi o único sítio onde vi gente com calças iguais... Mas ele diz que vieram de Tampa... E nunca, nunca nos vamos apresentar. Em 'What's He Building In There?' é uma dessas personagens que fala. Tornámo-nos excessivamente curiosos acerca dos nossos vizinhos e, no fundo, todos estamos convencidos que temos o direito de saber o que toda a gente faz.

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"'Get Behind The Mule' era o que o pai do Robert Johnson lhe dizia quando ele fugia. O problema é que ele se recusava a pôr-se atrás da mula todas as manhãs e ir para o campo lavrar que era a vida que lhe estava destinada. Acabou por fugir para Maxwell Street e andou pelo Texas todo, ninguém o ia prender a nenhum sítio. 'Get Behind The Mule' pode significar o que se quiser. Todos temos que nos levantar de manhã e ir trabalhar. A Kathleen costuma dizer 'Não casei com um homem, casei com uma mula'. E como eu tenho mudado muito, foi daí que veio Mule Variations.

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"Quando, no princípio, ainda estava a decidir-me sobre o que queria vir a ser, ouvia o Bob Dylan e o James Brown. Eram esses os meus heróis. E todas as noites ouvia o programa do Wolfman Jack. Cinquenta mil watts de 'soul power'. Durante a guerra, o meu pai foi técnico de rádio e, quando deixou a família, por volta dos meus onze anos, eu tinha um enorme fascínio pela rádio. Ele guardava os catálogos que recebia e eu construí um posto de rádio com a antena no telhado. A primeira estação que apanhei nuns auscultadores de dois dólares foi a do Wolfman. Pensei que tinha descoberto uma coisa que mais ninguém conhecia. Estava convencido que era de Kansas City ou de Omaha, que mais ninguém a sintonizava, ninguém sabia quem aquele tipo ou aqueles discos eram, que tinha apanhado alguém escondido num bunker ou numa estação de serviço de uma autoestrada a milhares de milhas daqui. E só para mim. Na verdade, ele emitia a partir de San Isidro, perto da fronteira. O que eu queria mesmo descobrir era como é que a nossa própria voz consegue sair de um rádio"

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"Quando era puto, fartava-me de comer espinafres para ser capaz de bater nos matulões. Comi uma lata inteira de espinafres e meti-me numa escaramuça a sério. Deu-me que pensar que os espinafres não saltassem da lata para fora e que eu tivesse de a abrir. Abri-a devagarinho e despejei-os para a boca. E, depois, amachuquei a lata. Podem ver, por aqui, como, desde a mais tenra idade, eu me preocupava com a minha imagem.

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1999

(2007)

1 comment:

Paulo said...

Que fixe. Praticamente ainda só o tinha ouvido, antes de começares com isto.